A família do Estado
A FAMÍLIA DO ESTADO
Vladimir Safatle
Folha de SP 21/04/2015
Uma das maiores aberrações que tramitam
em um Congresso Nacional pleno de propostas aberrantes é o chamado Estatuto da
Família (PL 6.583/2013). O projeto de lei
decide, de forma normativa, o que deve ser o conceito de família por meio de
uma imposição do Estado. Sua proposta restringe a noção de "família"
à "união entre um homem e uma mulher, por meio do casamento ou união
estável", compreendendo tal "esclarecimento" como peça central
contra, segundo o texto, "a desconstrução do conceito de família, aspecto
que aflige as famílias e repercute nas dinâmicas psicossociais do
indivíduo". Nesse sentido, se o
problema é a desconstrução do conceito de família, um boa sugestão seria
impedir as tais famílias de lerem Jacques Derrida, ao que parece responsável,
com suas pretensamente perigosas propostas de desconstrução, pela aflição e
sofrimento social de que nossas uniões entre homens e mulheres seriam vítimas. Os que não estão dispostos a seguir tal via
surreal deveriam perguntar-se quem, afinal, deu ao Estado a prerrogativa de
decidir o que é uma família e como ela deve ser composta. De onde saiu a ideia
de que o Estado deve decidir qual relacionamento afetivo está apto a ser visto
como família e qual não está? Há de se
insistir que essa não é uma atribuição do Estado. A ele cabe simplesmente
reconhecer a multiplicidade de formas de vínculos afetivos que a sociedade
produz, respeitando a todos eles. Ele não legisla, mas inscreve simbolicamente
e reconhece o que a sociedade produz. Nesse
sentido, precisamos não de mais leis, mas de menos leis. Quanto mais
desregulados forem os aparatos que visam definir a produção afetiva dos
sujeitos, menos teremos o risco de acordar com alguém travestido de legislador
moral a definir como deve ser nossa vida. Faz-se
necessário insistir nesse ponto, pois caminhamos para uma situação singular, na
qual a vida social dos cidadãos brasileiros tende a ser altamente regulada (por
meio de leis que visam restringir a configuração da família, do casamento, das
identidades de gênero etc.), enquanto sua vida econômica será brutalmente
desregulada e submetida a uma zona onde irá imperar a vontade do mais forte. Em suma, enquanto a bancada evangélica quer
decidir por você como devem ser as famílias, seu emprego será destruído por uma
lei que visa acabar com o que entendemos por "emprego formal", ou
seja, mínimas garantias trabalhistas de estabilidade.
Melhor seria se tivéssemos o inverso: forte regulação econômica e baixa
regulação biopolítica.
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