sábado, 29 de junho de 2013

"Coração Civil" - Milton Nascimento



Coração Civil

Quero a utopia, quero tudo e mais

Quero a felicidade nos olhos de um pai
Quero a alegria muita gente feliz
Quero que a justiça reine em meu país
Quero a liberdade, quero o vinho e o pão
Quero ser amizade, quero amor, prazer
Quero nossa cidade sempre ensolarada
Os meninos e o povo no poder, eu quero ver
São José da Costa Rica, coração civil
Me inspire no meu sonho de amor Brasil
Se o poeta é o que sonha o que vai ser real
Bom sonhar coisas boas que o homem faz
E esperar pelos frutos no quintal
Sem polícia, nem a milícia, nem feitiço, cadê poder?
Viva a preguiça viva a malícia que só a gente é que sabe ter
Assim dizendo a minha utopia eu vou levando a vida
Eu viver bem melhor
Doido pra ver o meu sonho teimoso, um dia se realizar
Milton Nascimento

Em pé de guerra: cidade e transumância

A breve reflexão que propomos visa tematizar uma articulação específica entre corpo e urbanismo; em concreto, pretendemos sublinhar como o acto do caminhar, compreendendo uma inolvidável condição antropológica, se torna igualmente apto a tecer uma ampla crítica ao modo como as cidades têm sido pensadas e reconfiguradas. Encetamos o nosso périplo através de uma análise fenomenológica do caminhar e de como tal exercício activa e pressupõe uma abertura corpórea ao mundo; de seguida, abordamos alguns desenvolvimentos recentes no urbanismo e na tecnologia que introduziram a erosão do andar a pé e do próprio espaço público como lugar de encontro fortuito com o outro; rematamos o texto precisando e valorizando a actualidade do caminhar como necessidade e prática estética subversiva de apropriação dos territórios urbanos.
 Dêmos o primeiro passo assinalando o óbvio: qualquer ser humano, em condições normais, possui a capacidade inata de se deslocar recorrendo às suas próprias pernas. Desde que não haja percursos dévios, somos capazes de nos movermos a cerca de cinco quilómetros por hora em qualquer direcção, varando distâncias e acidentes geográficos. Assim como Édipo perante a adivinha da esfinge, saibamos que a criança que gatinha vai conquistando a sua autonomia a partir do momento em que se aventura no equilíbrio precário das suas duas pernas e até que a velhice tolha e entreve essa liberdade.
Para ler o texto completo de Tiago Mesquita Carvalho clique aqui


sexta-feira, 28 de junho de 2013

Snowden, o que fez e por que foge

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Enquanto nas principais metrópoles do mundo movimentos sociais se organizam pela internet, governos viralizam vigilância da rede. E desta vez não é paranoia.
Numa fuga típica de filme hoolywoodiano, o ex-especialista da CIA Edward Snowden encontra-se num hotel localizado na zona de trânsito do aeroporto de Sheremetievo-Moscou, a caminho do Equador. Snowden, que no início do mês vazou ao jornal britânico The Guardian documentos sobre o programa de espionagem PRISM, da Agência de Segurança Nacional norte-americana (NSA), obteve ontem (24 de junho), do governo de Rafael Correa, o status de refugiado político.
Para ler o texto completo de Caue Seginemartin Ameni clique aqui

O papel de quem se crê consciente


 
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O protesto realizado quinta-feira 20 de junho na Avenida Paulista, em São Paulo, mostrou que as manifestações que têm ganhado a cidade estão divididas em dois grandes grupos: os organizados e os desorganizados. Eu sei que toda tentativa de classificação política e social — como esta que estou prestes a fazer — é generalista e não abarca a imensa diversidade do real. Portanto, muitas vezes acaba sendo inócua. Ainda assim, acredito que pode contribuir para a compreensão do que estamos vivendo, e reforçar alguns caminhos que me parecem abertos.
O primeiro grupo — os organizados — está formado majoritariamente por militantes de partidos políticos, movimentos sociais, sindicatos, centros acadêmicos, associações estudantis e organizações populares, muitas com atuação cultural. É um grupo pouco numeroso, mas está espalhado por todo o território paulistano: centro, periferia, bairros ricos, pobres, classe média, universidades públicas e privadas. Alguns de seus membros foram agredidos durante o protesto de quinta-feira, tiveram suas bandeiras queimadas e se viram obrigados a bater em retirada para não apanhar mais.
Para ler o texto completo de Tadeu Breda clique aqui

Perdão de dívida africana: é para valer?

Brasil anula débitos e procura expandir laços na África. Mas haverá condições ocultas?
 
O Brasil cancelou ou reestruturou cerca de 900 milhões de dólares da dívida de 12 países africanos. O anúncio foi feito pela presidente Dilma Rousseff em 25 de maio, por ocasião das comemorações de meio século da União Africana (UA), na Etiópia, e reflete a relevância cada vez maior das relações com países africanos. O Brasil abriu 19 novas embaixadas na África na última década, e nesse período o comércio entre o país e o continente africano quintuplicou, chegando a mais de 26 bilhões no ano passado.
Para ler o texto completo de  Inês Castilho clique aqui

Julian Assange pergunta: “quem traiu os EUA”?


 
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Faz agora um ano que entrei nessa embaixada, buscando refúgio porque estava sendo perseguido. Resultado dessa decisão, tenho conseguido trabalhar em relativa segurança, protegido contra os agentes dos EUA que investigam uma acusação de espionagem. Mas hoje, está começando o suplício de Edward Snowden.
Dois perigosos processos foram postos em movimento na última década, com consequências fatais para a democracia. O sigilo dos governos expandiu-se numa escala aterrorizante. E, simultaneamente, a privacidade dos seres humanos foi erradicada, em segredo. Há poucas semanas, Edward Snowden revelou ao mundo a existência de um programa secreto – que envolve o governo Obama, a comunidade de inteligência e gigantescas empresas que vendem serviços de internet – para espionar todos, em todo o mundo. Resposta automática, como mecanismo de um relógio: Edward Snowden foi acusado de crime de espionagem pelo governo Obama.
Para ler o texto completo de Julien Assange clique aqui

HUMOR NA MÚSICA: «Parabéns a você" (pelos grandes mestres)

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Uma brincadeira bem humorada ao piano...
A pianista Nicole Pesce faz uma brincadeira tocando “Parabéns a Você” como se fosse executada por Beethoven, Choppin, Bach, Mozart, etc... e, por último, por um pianista bêbado.
Para ver o vídeo da pianista Nicole Pesce clique aqui


quinta-feira, 27 de junho de 2013

Primavera Brasileira ou golpe de direita?

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“O Brasil não é para principiantes”, disse certa vez o compositor Tom Jobim. A sabedoria destas palavras está ecoando de novo a cada dia, nas duas últimas semanas. Entre 6 e 19 de junho, uma onda avassaladora de protestos de rua resgatou a ideia de que as lutas sociais valem a pena e marcou a emergência de uma cultura política de autonomia, redes sociais e horizontalidade. Um dia depois, as manifestações que deveriam celebrar este resgate foram em parte capturadas. Resvalaram para episódios de autoritarismo e intolerância, depois que a crítica às injustiças e à ausência de direitos foi direcionada contra os governos de esquerda e seus limites (vale ler este texto do repórter Tadeu Breda). Muitos dos que haviam se manifestado desde o início chocaram-se e recuaram. Foi inteligente, mas é hora de um novo passo. As ruas não se calarão, se quem luta por justiça estiver afastado delas. É preciso – e é possível – disputá-las. Este texto tentará explicar por quê e como, na forma urgente e imperfeita das perguntas e respostas.
Para ler o texto completo de Antonio Martins clique aqui



CONTARDO CALLIGARIS: Qual baderna?


 
Rio de Janeiro - Um grupo de manifestantes provocou um incêndio durantes os protestos, na capital carioca
Em agosto de 1792, Maria Antonieta devia achar que os que se juntavam na frente das Tuileries eram baderneiros ignorantes.Em dezembro de 1773, o governador inglês da província de Massachusetts devia pensar a mesma coisa dos "filhos da liberdade", que se disfarçavam de índios, subiam nos navios, jogavam o chá no mar e não queriam pagar os impostos.
Na época, Samuel Adams explicou que, mesmo se esses homens fossem apenas vândalos descontrolados, eles seriam, de fato, os defensores dos direitos básicos do povo das colônias.
A maioria dos paulistanos (e, suponho, dos brasileiros) pensa como Samuel Adams e deseja que as manifestações continuem, por uma razão que está muito além da tarifa dos ônibus: a relação do poder público com os cidadãos do Brasil é, sistematicamente, há muito tempo, de descaso e desrespeito, se não de abuso.
Para ler o texto completo de Contardo Calligaris clique aqui

terça-feira, 25 de junho de 2013

Georges Rudé, as multidões de junho no Brasil e as simplificações jornalísticas a seu respeito

PAÍS EM PROTESTO 20-06-2013
“Há duas semanas, observamos protestos em vários centros urbanos contra o aumento das tarifas de transportes coletivos e a falta de qualidade de transportes urbanos”. Eu poderia iniciar este texto assim e, ao fazê-lo, já estaria simplificando o mundo de experiências em ebulição fora de meu texto. Outra opção poderia ser: “Vemos o vandalismo contra o patrimônio público e a reação contra os partidos políticos. Isso é um atentado contra a democracia”. Neste caso, estaria criando um enorme foco sobre ações pontuais e correndo o risco de reduzir o todo a uma parte pouco representativa do conjunto das agendas que emergem nas multidões de junho.
Nas décadas de 1960 e 1970, num momento de ebulição social, política e cultural da descolonização, da luta pelos direitos civis e da contracultura, o historiador marxista britânico Georges Rudé (1910-1993) dedicou-se a estudar as Multidões na História, focado no eixo cronológico 1780-1860, com foco comparativo nos casos francês e inglês. Naquele momento, Rudé demonstrava a originalidade epistemológica de transformar em objeto de estudo, numa chave distinta da psicologia social de antanho, um agente social coletivo desinstitucionalizado: a Multidão. Observem: não era “povo”, “classe” ou “nação”, conceitos sujeitos a institucionalização jurídica, política e econômica, mas “Multidão”. Naquele momento, pensar a categoria “Multidão” como agente social tinha grande frescor contextual. A sua escrita era de esperança em relação à renovação social, econômica, cultural e política para além do capitalismo.
Ao pensar nas manifestações das multidões de junho de 2013 e nos vestígios da imprensa sobre tais eventos, chequei à conclusão de que valeria a pena recuperar algumas ponderações de Georges Rudé, pois constatei uma patente incapacidade, ou má fé, dos meios de comunicação massivos, abertos e do “horário nobre” (desonrado por notícias superficiais) na forma de lidarem com o agente social “Multidão” e os vários movimentos sociais, indivíduos e agendas que compõem o mundo do pós-Guerra Fria. Rudé fizera um trabalho de sistematização e tipificação das ações de revolta das “Multidões”.
Para ler o texto completo de Alexander Martins Vianna clique aqui

As manifestações dos jovens de classe média


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No prefácio (1920) de Imperialismo, fase superior do capitalismo (1916), Vladimir Illitch Lenin (1870-1924), líder da revolução russa de 1917, define o imperialismo tal como sugere o subtítulo de seu livro, fase superior do capitalismo, detendo os seguintes traços: 1)através dele, o capitalismo se transformou num sistema mundial de subjugação; 2) que estrangula a maioria da população do planeta; 3) através de um punhado de países “avançados”, armados até os dentes; 4) que dominam e arrastam todo o planeta para uma incessante guerra pela partilha das riquezas dos povos; 5) saqueando-os implacavelmente;6) nesse cenário, não existe a mínima possibilidade de alternativas românticas, como se pudéssemos produzir história nacional, por exemplo, fora das estratégias imperialistas de dominação do mundo: ou nos submetemos, deixando que saqueiem nossos recursos e nossos povos humilhados e empobrecidos, quando não assassinados; ou nos armamos até os dentes entrando na disputa interimperialista; ou nos unimos, com países igualmente saqueados e submetidos, a fim de, em processo, através de uma agenda própria, construirmos história.
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As duas guerras mundiais do século passado foram, sob esse ponto de vista, desencadeadas por países armados até os dentes que disputavam a partilha do mundo, principalmente os países do Ocidente, Alemanha, Inglaterra, França, Itália, Espanha, Estados Unidos, porque, se o imperialismo é a fase superior do capitalismo, ele é simultaneamente a fase superior da expansão colonizadora europeia; uma espécie de cruzada ocidental pela repartição não menos ocidental de todo o planeta, sob a forma, por exemplo, da imposição de um modelo único de produção econômica, o sistema mundial de produção de mercadorias, conforme a definição do filósofo alemão Robert Kurz, independente se prevalece, nele, o Estado, a “livre iniciativa” ou o socialismo, pois por todos os lados a mercadoria reina absoluta, mercantilizando-nos imperiosamente, ocidentalmente, através da expansão imperialista.
Para ler o texto completo de Luís Eustáquio Soares clique aqui

sábado, 22 de junho de 2013

A arte de mostrar o invisível

"Mundo invisível"
Não é toda hora que o cinéfilo pode ver, numa única sessão, um pouco do cinema de Wim Wenders, Theo Angelopoulos, Manoel de Oliveira, Jerzy Stuhr, Beto Brant e um punhado de outros realizadores de primeira linha. É isso, nada menos, o que nos oferece o longa Mundo invisível com seus onze segmentos, assinados por doze diretores das mais variadas nacionalidades.
Para ler o texto completo de José Geraldo Couto, clique aqui

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS: O preço do progresso e os dois Brasis



Com a eleição da Presidente Dilma Roussef, o Brasil quis acelerar o passo para se tornar uma potência global. Muitas das iniciativas nesse sentido vinham de trás mas tiveram um novo impulso: Conferência da ONU sobre o Meio Ambiente, Rio +20, em 2012, Campeonato do Mundo de Futebol em 2014, Jogos Olímpicos em 2016, luta por lugar permanente no Conselho de Segurança da ONU, papel ativo no crescente protagonismo das “economias emergentes”, os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), nomeação de José Graziano da Silva para diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), em 2012, e de Roberto Azevedo para diretor-geral da Organização Mundial de Comércio, a partir de 2013, uma política agressiva de exploração dos recursos naturais, tanto no Brasil como em África, nomeadamente em Moçambique, favorecimento da grande agricultura industrial sobretudo para a produção de soja, agro-combustíveis e a criação de gado.
Beneficiando de uma boa imagem pública internacional granjeada pelo Presidente Lula e as suas políticas de inclusão social, este Brasil desenvolvimentista impôs-se ao mundo como uma potência de tipo novo, benévola e inclusiva. Não podia, pois, ser maior a surpresa internacional perante as manifestações que na última semana levaram para a rua centenas de milhares de pessoas nas principais cidades do país.
Para ler o texto completo de Boaventura de Sousa Santos clique aqui
Sobre o movimento de protestos no Brasil pode ler ainda os segintes textos:
A hora do Direito à Cidade de Alexandre Pilati
Questão de Polícia ou Questão Urbana? de Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida
Direitos trabalhistas: outra vítima do cartel dos transportes de Adamo Bazani
Os barões do busão andam de Ferrari de Marcos Aurélio Ruy e Van Martins
As razões dos protestos contra a Copa de Marina Amaral


quinta-feira, 20 de junho de 2013

Biopoder confessional e o protesto contra o aumento da passagem de ônibus


São Paulo -  Tropa de Choque da PM entra em confronto com manifestantes na Rua Augusta, durante protesto contra o aumento da tarifa do transporte público
Chamemos de discursos o reino dos ditos e dos escritos, independente da área do saber. Todas as sociedades, sob esse ponto de vista, são constituídas de discursos, de ditos e de escritos. Nelas e através delas um rigoroso controle dos discursos é implacavelmente exercido, razão pela qual o desafio da ordem social, fundamental para qualquer tipo de sociedade hierarquizante, está na relação direta com a ordem dos discursos. Uma sociedade, pois, é a sua ordem discursiva, seus ditos e escritos e principalmente seus interditos, suas escritas validadas, sagradas; e suas grafias proibidas, desqualificadas, profanas. Em A ordem do discurso (1970), o filósofo francês Michel Foucault propôs, como objeto de pesquisa precisamente isto: a história da ordenação dos discursos no interior da modernidade ocidental. Como uma edição escrita (um escrito de um dito) de sua aula inaugural no Collège de France,o livro A ordem do discurso de Foucault concentrou os principais temas com os quais o autor de Vigiar e Punir iria trabalhar doravante, motivo suficiente para a sua singular importância. Nele e através dele Michel Foucault procurou mapear o modo pelo qual a modernidade foi discursivamente organizada a fim de produzir seus próprios critérios de verdades e, portanto, de cientificidade.
Para tanto, Foucault argumentou que três dispositivos externos aos discursos foram fundamentais para as suas ordenações, no Ocidente. São eles: 1) A interdição da palavra; 2) a segregação da loucura; 3) a vontade de verdade. O primeiro dispositivo, a interdição da palavra, desdobra-se em dois campos interditados discursivamente: o sexo e a política, o que significa dizer que, na história da modernidade ocidental, o sexo e a política deveriam entrar literalmente numa ordem discursiva; deveriam ser ordenados como discursos ou simplesmente constituírem-se, se quisessem ser validados socialmente, como partes e contrapartes de uma ordem social que reconhecia de antemão o especial perigo da política e do sexo, de modo que, mais que evitá-los e expulsá-los da ordem discursiva vigente, o importante seria a classificação e a distribuição ordenada da política e do sexo, produzindo, por exemplo, um sexo sem política e uma política sem sexo, separando-os.
Para ler o texto completo de Luís Eustáquio Soares clique aqui

domingo, 16 de junho de 2013

"Reconhecimento do amor" - Carlos Drummond de Andrade


Reconhecimento do amor

Amiga, como são desnorteantes
Os caminhos da amizade.
Apareceste para ser o ombro suave
Onde se reclina a inquietação do forte
(Ou que forte se pensa ingenuamente).
Trazias nos olhos pensativos
A bruma da renúncia:
Não querias a vida plena,
Tinhas o prévio desencanto das uniões para toda a vida,
Não pedias nada,
Não reclamavas teu quinhão de luz.
E deslizavas em ritmo gratuito de ciranda.


Descansei em ti meu feixe de desencontros
E de encontros funestos.
Queria talvez – sem o perceber, juro -
Sadicamente massacrar-se
Sob o ferro de culpas e vacilações e angústias que doíam
Desde a hora do nascimento,
Senão desde o instante da concepção em certo mês perdido na História,
Ou mais longe, desde aquele momento intemporal
Em que os seres são apenas hipóteses não formuladas
No caos universal
Como nos enganamos fugindo ao amor!
Como o desconhecemos, talvez com receio de enfrentar
Sua espada coruscante, seu formidável
Poder de penetrar o sangue e nele imprimir
Uma orquídea de fogo e lágrimas.


Entretanto, ele chegou de manso e me envolveu
Em doçura e celestes amavios.
Não queimava, não siderava; sorria.
Mal entendi, tonto que fui, esse sorriso.
Feri-me pelas próprias mãos, não pelo amor
Que trazias para mim e que teus dedos confirmavam
Ao se juntarem aos meus, na infantil procura do Outro,
O Outro que eu me supunha, o Outro que te imaginava,
Quando – por esperteza do amor – senti que éramos um só.
Amiga, amada, amada amiga, assim o amor
Dissolve o mesquinho desejo de existir em face do mundo
Com o olhar pervagante e larga ciência das coisas.
Já não defrontamos o mundo: nele nos diluímos,
E a pura essência em que nos transmutamos dispensa
Alegorias, circunstâncias, referências temporais,
Imaginações oníricas,
O vôo do Pássaro Azul, a aurora boreal,
As chaves de ouro dos sonetos e dos castelos medievos,
Todas as imposturas da razão e da experiência,
Para existir em si e por si,
À revelia de corpos amantes,
Pois já nem somos nós, somos o número perfeito: UM.


Levou tempo, eu sei, para que o Eu renunciasse
à vacuidade de persistir, fixo e solar,
E se confessasse jubilosamente vencido,
Até respirar o júbilo maior da integração.
Agora, amada minha para sempre,
Nem olhar temos de ver nem ouvidos de captar
A melodia, a paisagem, a transparência da vida,
Perdidos que estamos na concha ultramarina de amar.
Carlos Drummond de Andrade 

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