sexta-feira, 19 de julho de 2024

"Sobre um poema" - Herberto Helder


 


Sobre um poema




Um poema cresce inseguramente


na confusão da carne,


sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,


talvez como sangue


ou sombra de sangue pelos canais do ser.




Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência


ou os bagos de uva de onde nascem


as raízes minúsculas do sol.


Fora, os corpos genuínos e inalteráveis


do nosso amor,


os rios, a grande paz exterior das coisas,


as folhas dormindo o silêncio,


as sementes à beira do vento,


- a hora teatral da posse.


E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.




E já nenhum poder destrói o poema.


Insustentável, único,


invade as órbitas, a face amorfa das paredes,


a miséria dos minutos,


a força sustida das coisas,


a redonda e livre harmonia do mundo.



- Em baixo o instrumento perplexo ignora


a espinha do mistério.


- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.



 

Herberto Helder



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