sábado, 17 de julho de 2021

"Preso à cidade": Adão Cruz

 




Preso à cidade

 



 

Preso à cidade


nesta inquietante angústia das sombras


ao redor de um tudo-nada que nos prende e constrange


cai dos telhados o pó cinzento de uma neblina estranha


que definha as ruas e arrasta as horas na lentidão dos passos.


Lá atrás


uma réstia de luz presa ao vidro de um candeeiro partido


sob as janelas podres


lembra que se alma houvesse


seria fácil presa de um qualquer rígido corpo


enjoado de farsas e falácias amontoadas no lixo.


A noite caiu de forma estranha sobre a cidade sem corpo


definhada de luz e consciência


deixando atrás de si os últimos passos de uma existência


presa a todas as obscurantistas ordens estabelecidas.


Até o vento se foi


para não arrastar a neblina estranha


e para não calar o pesado silêncio que se prende ao corpo


como mortalha do tempo que desfaz a réstia de luz


presa ao vidro de um qualquer candeeiro partido.


Ainda ontem era dia nos braços do trabalho


e nas carnes que não conheciam o exílio


recusando morrer fora dos sonhos e da vida


e o vento varria o silêncio


para libertar o corpo e a mente


da neblina das noites pegajosas.


Havia certezas por entre os tremores da indecisão


havia sorrisos verdades e ilusões


e havia brisas sonâmbulas calando os medos


e havia rios arrastando as paredes negras


e todas as sombras dos candeeiros partidos.


Preso à cidade


na tristeza que nos envolve e nos liberta o pensamento


cai dos telhados a poeira do tempo


que cala as ruas e prende as horas na lentidão dos passos


e abre no chão quadriculado um espelho negro


com um menino tocando o céu azul


rodeado de pássaros e flores e rios cristalinos


e nos estende a mão num gesto de paz que nos acalma e nos perdoa


e carinhosamente


e sigilosamente


nos devolve ao nada por um caminho oculto


irreversível.

 




 

 

Adão Cruz





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