sábado, 17 de julho de 2021

Alex Castro: Nossa língua é a história dos nossos crimes

 



Não existe palavra inocente. Nem falante.

 

Alex Castro – 17/07/2021



Uma marciana perceptiva conseguiria deduzir toda a história de machismo, racismo, homofobia (ou seja, outrofobia) da cultura lusobrasileira simplesmente lendo algumas poucas páginas escritas em português.



Ela encontraria expressões como "não seja xiita", "pára de judiar do gato" e "não passa um cristão aqui essa hora" e se perguntaria: por que as pessoas membros de uma religião viraram sinônimos de intransigência, de outra de maldade, e, de uma terceira, de pessoa humana genérica?



(Ninguém precisaria contar para a nossa perceptiva marciana qual é a religião dominante dessa cultura.)



Nossa marciana perceberia que quase todos os xingamentos feitos contra homens se referem a uma suposta homossexualidade ("mariquinha", "viadinho", "puto"), como se ser homossexual fosse a pior coisa que um homem pudesse ser.



(Ninguém precisaria contar para a nossa perceptiva marciana qual é a orientação sexual dominante nessa sociedade.)



Nossa marciana perceberia que quase todos os xingamentos feitos contra mulheres se referem a um suposto excesso de sexualidade ("puta", "galinha", "vadia"), como se dispor livremente de seu corpo fosse a pior coisa que uma mulher pudesse fazer. Mais ainda, ela perceberia que muitas e muitas palavras que são neutras no masculino significam variações pejorativas de mulher-que-faz-sexo-demais quando no feminino: aventureira, pistoleira, cachorra.



(Ninguém precisaria contar para a nossa perceptiva marciana qual é o gênero dominante nessa sociedade.)



Nossa marciana perceberia que quase todas as variações de "negro" e "preto" ("enegrecer", "empretecer" etc.) são negativas e, de branco, positivas. Se estivesse lendo textos cariocas, talvez se deparasse com a expressão "neguinho" e, a princípio, talvez, pensasse que é um sinônimo de "pessoa genérica", até perceber que quase sempre é "neguinho só faz merda" e quase nunca "neguinho tem uma casa linda em Búzios".



(Ninguém precisaria contar para a nossa perceptiva marciana qual é a cor dominante nessa sociedade.)



Nossa História não acabou: ela vive e pulsa e se reproduz nas entrelinhas da nossa língua.



Mas a História não é uma prisão, nem um destino: ela é uma prática.



Que pode e deve ser mudada. No nosso dia-a-dia. Uma palavra de cada vez.

 


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