Contardo Caligaris: Para (ou contra) o Dia das Crianças
Contardo Caligaris: Para (ou contra) o Dia das
Crianças
Na semana retrasada, em
Buenos Aires, uma criança de seis anos foi autorizada a mudar de nome e de
gênero no registro de identidade argentino. Ela tinha nascido menino, Manuel, e
declarava ser menina e princesa desde os 18 meses. A criança passa a se chamar
agora Luana, nome que ela já tinha escolhido dois anos atrás.
Ela se vestirá de
menina, brincará com as meninas e, na escola, frequentará o banheiro feminino.
Esse detalhe não é irônico: pouco tempo atrás, nos EUA, uma criança transgênero
da mesma idade de Luana, Coy Mathis, teve que recorrer à Justiça para obter o
direito de frequentar o banheiro feminino de sua escola.
Simpatizo com os juízes
norte-americanos e argentinos, porque sua decisão não foi fácil. Simpatizo
ainda mais com os pais de Luana, de Coy e de todas as crianças pequenas que
hoje são reconhecidas como transgênero.
Imagino o drama dos
pais. Eles podem 1) proibir e coagir para tentar estancar a identificação com o
outro sexo, 2) permitir e deixar a coisa se desenvolver sem vaiar e sem aplaudir
ou, ainda, 3) tomar as dores de suas crianças e defender o direito de elas
mudarem de gênero. Qual é a escolha certa?
Concordando ou não com a
escolha dos pais de Luana e Coy, para apreciar sua coragem, basta se lembrar de
que poucas décadas atrás ainda se prendia a mão esquerda atrás das costas das
crianças canhotas na hora de elas aprenderem a escrever.
Qual será o próximo
passo desses pais? Em tese, tentarão contrariar a puberdade administrando à
filha o hormônio feminino que ela não produz. Mesmo assim, o corpo de Luana e
Coy se tornará mais masculino do que elas esperam, e chegará a hora de recorrer
à cirurgia estética e, por exemplo, implantar seios e depilar o corpo inteiro a
laser. Quando?
Um recente artigo de
Margaret Talbot, numa "New Yorker" deste ano (http://migre.me/giGK1),
conta a história de Skylar, criança transgênero de menina para menino, que
começou a testosterona e removeu os seios aos 16 anos.
Talbot também mostra
que, sobretudo nos EUA, cresce fortemente o número de crianças pequenas que
pedem para mudar de gênero.
Ora, a diferença de
gênero é muito menos binária do que estamos acostumados a pensar, e acredito
mesmo que haja espaço para um terceiro e um quarto gênero. Mas acho sintomática
a diminuição progressiva da idade das crianças consideradas transgênero.
Sintomática de quê?
Para autorizar uma
mudança de sexo, psicólogos e psiquiatras recorrem a critérios sobre os quais é
inevitável que se discuta até não poder mais. Mas, de qualquer forma, sejam
quais forem os critérios, alguém acha que possamos aplicá-los em crianças de
seis anos?
O que significa que um
menino, aos dois anos, declare que ele é menina ou princesa? Mesmo que ele não
desista nunca dessa ideia, ainda assim ele tem vários destinos possíveis.
Talvez, no futuro, ele acorde a cada dia num corpo que lhe repugna, e sua vida
só se resolva se ele se transformar concretamente em mulher. Mas uma outra
possibilidade (de novo, entre várias) é que, no futuro e durante a vida inteira,
ele esconda sua feminilidade e faça dela uma grande fantasia erótica.
A segunda via não é a
repressão da primeira: é outra aventura, totalmente. Quem decidirá, diante de
uma criança de seis anos, se ela é candidata à primeira ou a segunda via? Ou a
outra via ainda?
É preciso idealizar
loucamente a infância para incentivar ou satisfazer o desejo de mudar de gênero
manifestado por uma criança de seis anos.
Pouco tempo atrás, a uma
criança que dissesse suas vontades, só se respondia "cresça e depois a
gente conversa". De repente, hoje, parece que o próprio fato de uma
criança falar seja garantia da qualidade ("verídica") do desejo que
ela expressa (talvez por isso, aliás, não saibamos mais o que fazer quando as
crianças dizem que preferem dormir tarde, estudar outro dia etc.). Será que nos
esquecemos de que uma criança inventa, finge, mente, que nem gente grande, se
não mais?
Sábado é Dia da Criança.
Ótimo --que seja um dia em que as crianças possam fazer uma ou outra besteira
que lhes der na telha e em que os adultos gastem um dinheiro em presentinhos.
Mas péssimo se o Dia das
Crianças for a celebração canônica da infância, que é um ídolo moderno
especialmente perigoso. Perigoso? Sim. Espero que não seja o caso de Luana e de
Coy, mas as primeiras vítimas de nossa idealização da infância são sempre as
próprias crianças.
Folha de São Paulo 10/10/2013
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