Biógrafo de Clarice pede que Caetano mude posição sobre biografias; leia carta
Biógrafo de Clarice pede que Caetano mude posição sobre biografias; leia carta
BENJAMIN
MOSER
ESPECIAL PARA A FOLHA DE SÃO PAULO - 09/10/2013
Caro Caetano,
Nos EUA, quando eu era menino, havia uma campanha
para prevenir acidentes na estrada. O slogan rezava: "Amigos não deixam
amigos bêbados dirigir". Lembrei disso ao ler suas declarações e as de
Paula Lavigne sobre biografias no Brasil. Fiquei tão chocado que me sinto obrigado
a lhe dizer: amigo, pelo amor de Deus, não dirija.
Nós nos conhecemos há muitos anos, desde que ajudei
a editar seu "Verdade Tropical" nos EUA. Depois, você foi maravilhoso
quando lancei no Brasil a minha biografia de Clarice Lispector, escrevendo
artigos e ajudando com o alcance que só você possui. Admiro você, de todo o meu
coração.
E é como amigo e também biógrafo que te escrevo
hoje. Sei que você sabe da importância de biografias para a divulgação de obras
e a preservação da memória; e sei que você sabe quão onerosos são os obstáculos
à difusão da cultura brasileira dentro do próprio Brasil, sem falar do
exterior.
Fico constrangido em dizer que achei as declarações
suas e da Paula, exigindo censura prévia de biografias, escandalosas, indignas
de uma pessoa que tanto tem dado para a cultura do Brasil. Para o bem dessa
mesma cultura, preciso dizer por quê.
Primeiro, achei esquisitíssimo músicos dizerem que
biógrafos querem ficar com "fortunas". Caetano, como dizem no Brasil:
fala sério. Ofereço o meu exemplo. A biografia de Clarice ficou nas listas de
mais vendidos em todo o Brasil.
Mas, para chegar lá, o que foi preciso? Andei por
cinco anos pela Ucrânia, pela Europa, pelos EUA, pesquisando nos arquivos e
fazendo 257 entrevistas. Comprei centenas de livros. Visitei o Brasil 12 vezes.
Fiquei contente com as vendas, mas você acha que
fiquei rico, depois de cinco anos de tais despesas? Faça o cálculo. A única
coisa que ganhei foi a satisfação de ver o meu trabalho ajudar a pôr Clarice
Lispector no lugar que merece.
Tive várias vantagens desde o início. Tive o apoio
da família da Clarice. Publico em língua inglesa, em outro país.Tenho a sorte
de ter dinheiro próprio. Imagine quantos escritores no Brasil reúnem essas
condições: ninguém.
Mas a minha maior vantagem foi simplesmente
ignorância.
Não fazia ideia das condições em que trabalham
escritores e jornalistas brasileiros. Não sabia quanto não se pode dizer, num
clima de medo que lembra a época de Machado de Assis, em que nada podia ofender
a "Corte".
Aprendi, por exemplo, que era considerado
"corajoso" escrever uma coisa que todo mundo no Brasil sabe há quase
um século, que Mário de Andrade era gay. Aprendi que era até inusitado chamar
uma cadeira de Sergio Bernardes de feia.
Aprendi o quanto ganham escritores, jornalistas e
editores no Brasil, e quanto os seus empregos são inseguros, e como são
amedrontados por ações jurídicas, como essas com que a Paula, tão bregamente,
anda ameaçando.
É um tipo de censura que você talvez não reonheça
por não ser a de sua época. Não obriga artistas a deixarem o país, não manda
policiais aos teatros para bater nos atores. Mas que é censura, é. E muito mais
eficaz do que a que existia na ditadura. Naquela época, as obras eram
censuradas, mas existiam. Hoje, nem chegam a existir.
Você já parou para pensar em quantas biografias o
Brasil não tem? Para só falarmos da área literária, as biografias de Mário de
Andrade, de João Guimarães Rosa, de Cecília Meirelles, cadê? Onde é que ficou
Manuel Bandeira, Rachel de Queiroz, Gilberto Freyre? Você nunca se perguntou
por que nunca foram feitas?
Eu queria fazer. Mas não vou. Porque o clima no
Brasil, financeiro e jurídico, torna esses empreendimentos quase impossíveis.
Quantos escritores brasileiros estão impedidos de escrever sobre a história do
seu país, justamente por atitudes como as suas?
Por isso, também, essas declarações, de que o
biógrafo faz isso só por amor ao lucro, ficam tão pouco elegantes na boca de
Paula Lavigne. Toda a discussão fica em torno de nossas supostas
"fortunas".
Você sabe que no Brasil existem leis contra a
difamação; que um biógrafo, quando cita uma obra ainda com
"copyright", tem obrigação de pagar para tal uso. Não é diferente de
você cantar uma música de Roberto Carlos. Essas proteções já existem, podem ser
melhoradas, talvez. Mas estamos falando de uma coisa bem diferente da coisa que
você está defendendo.
De qualquer forma, essas obsessões com
"fortunas" alheias fazem parte do Brasil do qual eu menos gosto. Une
a tradicional inveja do vizinho com a moderna ênfase em dinheiro que
transformou um livro, um disco, uma pintura em "produto cultural".
Não é questão de dinheiro, Caetano. A questão é:
que tipo de país você quer deixar para os seus filhos? Minha biografia foi
elogiosa, porque acredito na grandeza de Clarice. Mas liberdade de expressão
não existe para proteger elogios. Disso, todo mundo gosta. A diferença entre o
jornalismo e a propaganda é que o jornalismo é crítico. Não existe só para
difundir as opiniões dos mais poderosos. E essa liberdade ou é absoluta, ou não
existe.
Imagino, e compreendo, que você pense que está
defendendo o direito dos artistas à vida privada. Mas quem vai julgar quem é
artista, o que é vida privada e o que é vida pública, sobre quem, e sobre o que
se pode escrever e sobre quem e, sobre quem não? Você escreve em jornal, você,
como o artista deve fazer, tem se metido no debate público. José Sarney,
imortal da Academia Brasileira das Letras, escreve romances. Deve ser
interditada também qualquer obra crítica sobre ele, sem autorização prévia?
Não pense, Caetano, que o seu passado de censurado
e de exilado o proteja de você se converter em outra coisa. Lembre que o
Sarney, quando foi eleito governador do Maranhão, chegou numa onda de aprovação
da esquerda. Glauber Rocha, também amigo seu, foi lá filmar aquela nova aurora.
Não seja um velho coronel, Caetano. Volte para o
lado do bem. Um abraçaço do seu amigo,
Benjamin Moser
Benjamin
Moser é autor de "Clarice" (Cosac Naify)
2 comentários:
Bravo, Benjamin!!!
Acredito que o nosso querido, sensível e x-exilado Caetano vai repensar e retratar-se...
Abraçaço meu pra ti...
A carta Benjamin Moser é uma preciosidade e de uma sensibilidade emocionante.
Espero bem, que Caetano não seja insensível à carta, porque realmente como ex-exilado, terá a sensibilidade de rever a sua posição.
Caetano de censurado, passa a censor? Estraga assim a sua imagem? Qualquer coisa não bate certo!
É pertinente a frase de Benjamim:"que tipo de país você quer deixar para os seus filhos?"
Para Benjamim os meus parabéns pela lição que nos deu a todos.
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