quinta-feira, 30 de maio de 2024

"Se te queres matar" - Fernando Pessoa

 





Se te queres matar

 




Se te queres matar, porque não te queres matar?


Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,


Se ousasse matar-me, também me mataria...


Ah, se ousares, ousa!


De que te serve teu mundo interior que desconheces?



 

Talvez, matando-te, o conheças finalmente...


Talvez, acabando, comeces...



 

E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,


Não saúdes como eu a morte em literatura!


Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!


Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...


Sem ti correrá tudo sem ti.


Talvez seja pior para outros existires que matares-te...


Talvez peses mais durando, que deixando de durar...


A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado


De que te chorem?


Descansa: pouco te chorarão...


O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,


Quando não são de coisas nossas,


Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,


Porque é a coisa depois da qual nada acontece aos outros...


Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda


Do mistério e da falta da tua vida falada...


Depois o horror do caixão visível e material,


E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.


Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,


Lamentando a pena de teres morrido,


E tu mera causa ocasional daquela carpidação,


Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...


Muito mais morto aqui que calculas,


Mesmo que estejas muito mais vivo além...


Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,


E depois o princípio da morte da tua memória.


Há primeiro em todos um alívio


Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...


Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,


E a vida de todos os dias retoma o seu dia...


Depois, lentamente esqueceste.


Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:


Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste;


Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.


Duas vezes no ano pensam em ti.


Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,


E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.


Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...


Se queres matar-te, mata-te...


Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!...


Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?


Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera


As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?


Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?


Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem,


Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?


És importante para ti, porque é a ti que te sentes.


És tudo para ti, porque para ti és o universo,


E o próprio universo e os outros


Satélites da tua subjetividade objetiva.


És importante para ti porque só tu és importante para ti.


E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?


Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?


Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,


Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?


Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?


Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente:


Torna-te parte carnal da terra e das coisas!


Dispersa-te, sistema físico-químico


De células noturnamente conscientes


Pela noturna consciência da inconsciência dos corpos,


Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,


Pela relva e a erva da proliferação dos seres,


Pela névoa atómica das coisas,


Pelas paredes turbilhonantes


Do vácuo dinâmico do mundo...



 

Fernando Pessoa



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