domingo, 19 de maio de 2024

"Duas vezes nada" - Manuel de Freitas


 


Duas vezes nada




É assim, amiga. Encontramo-nos


quando calha nos bares de antigamente,


deixando que sobre o tampo azul


das mesas volte a pousar


um baço cemitério de garrafas.



Constatamos o pior,  os seus aspectos.


Corpos e livros que foram ficando


por ler na voracidade da noite de Lisboa.


De facto, crescemos em alcoolémia,


acordamos tarde, em pânico,


e perdemos  os dias e os dentes


com uma espécie de resignação.


(Não temos, ao que parece, serventia.)


Sorrimos um pouco, ao terceiro

gin, como quem renasce para a morte,


seus gestos de ternura ou de exuberância.


Talvez tenhamos calculado mal


o ângulo da queda, esta vitória


sem nobreza dos venenos todos.



Mas agora é tarde. Tudo fechou


para nós, para sempre. O amor,


o desejo, até o onanismo da destruição.


Antes de procurares a esmola


do último táxi, fica esta imagem


parada, a desvanecer-se


no frio mais frio da memória:



não dois corpos sentados a trocarem


medo, cigarros e palavras póstumas,


mas duas vezes nada, ninguém,


o silêncio da noite destronando


as cadeiras onde por razão nenhuma


nos sentámos. Os anos, amiga, passaram.



Manuel de Freitas





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