quarta-feira, 15 de maio de 2024

"Ode à noite (Inteira)" - Manuel de Freitas in Sunny Bar

 




Ode à noite (Inteira)




Gosto do momento, exato ou nem por isso,


em que se torna possível colar cartazes


nas paredes ao lado dos meus ombros (espero


o autocarro, vejo devagar, sorrio). Mas


gosto, sobretudo, dos cães quase sem dono


que roçam as esquinas, pisando restos de garrafas


– ou das pessoas que desconheço


e das bebidas todas que ignoro


(porque me matam menos e se chamam


– como eu – insónia, pesadelo, golpe baixo).


Existem, claro, raparigas louras um tanto


heterodoxas que não te apetece beijar


(a forca do bâton, perfeita – o cigarro aceso


pedindo outro lume). Essas mesmas que hão-de


um dia procriar com zelo, evitando rugas,


tumores e o mundo como representação misógina.


Mais lírica, sem dúvida, é a lavagem das ruas,


com a cerveja a premiar a farda


demasiado verde e os bigodes de serviço.


Outros, alguns, tornam concreto o torpor


de um charro e pedem-te em crioulo básico


um cigarro português que tu vais dar,


sem esforço e sem palavras. Entre shots, piercings,


t-shirts de Guevara e gel, podes não acreditar


por algumas horas no axioma frágil do teu corpo.


Esfumas-te, como eles, no espelho de um bar


qualquer, país de enganos e baratas. E


quase gostas disso, quase: a música de punhais,


servil, um certo e procurado desencontro.


Um táxi te ensinará depois o caminho de casa


– ou o seu contrário, pois só ali (anónimo


e desfocado) eras finalmente tu, ou podias ser.


O resto, a vida, fica para outra vez.



Manuel de Freitas in Sunny Bar





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