quarta-feira, 25 de agosto de 2021

"Corpo habitado" - Eugénio de Andrade




 

Corpo habitado




 

 

Corpo num horizonte de água,


corpo aberto


à lenta embriaguez dos dedos,


corpo defendido


pelo fulgor das maçãs,


rendido de colina em colina,


corpo amorosamente humedecido


pelo sol dócil da língua.



Corpo com gosto a erva rasa


de secreto jardim,


corpo onde entro em casa,


corpo onde me deito


para sugar o silêncio,


ouvir


o rumor das espigas,


respirar


a doçura escuríssima das silvas.



 

Corpo de mil bocas,


e todas fulvas de alegria,


todas para sorver,


todas para morder até que um grito


irrompa das entranhas,


e suba às torres,


e suplique um punhal.



 

Corpo para entregar às lágrimas.


Corpo para morrer.



 

Corpo para beber até ao fim –


meu oceano breve


e branco,


minha secreta embarcação,


meu vento favorável,


minha vária, sempre incerta


navegação.

 




 

Eugénio de Andrade



 

 

 

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