terça-feira, 17 de agosto de 2021

"O meu gesto das coisas simples" - Adão Cruz

 




O meu gesto das coisas simples

 




Fui à caixa dos gestos e baralhei-os todos, cheio de raiva por não encontrar o meu gesto das coisas simples.


Há muitos anos que o perdi e nunca mais consegui encontrá-lo.


Esperemos mais um par de noites, pois os sonhos, às vezes, trazem-nos aquilo que julgamos perdido para sempre.


Os sonhos adormecem, muitas vezes, no regaço da realidade, e outras vezes a realidade esconde-se no meio dos sonhos.


Onde estará o meu gesto das coisas simples?


Ora bem, talvez o gesto das coisas simples ande por aí perdido nalgum sonho.



 

Foi numa noite de tempestade.


Um refulgente relâmpago estralejou lá fora e faíscas de luz incendiaram as frinchas da janela.


Um ribombante trovão abanou o quarto e o sonho foi-se.


Os sonhos não gostam de tempestades nem do abuso das realidades.


Acendi a luz e vi no tapete o meu gesto das coisas simples.


Peguei-lhe com toda a ternura e pareceu-me que ele queria aninhar-se entre os meus dedos.


Confesso, dei-lhe um beijinho.



 

Fui ao monte das recordações.


O meu gesto das coisas simples espremeu uma lágrima quando lhe mostrei as coisas esquecidas, abandonadas, desde os tempos em que nós os dois éramos apenas simples.


O entrosamento das palavras e das imagens das coisas simples teciam uma espécie de fábula que deliciava a nossa inocência.


Às curvas do tempo não é fácil reter as coisas simples, e, como o amor, as coisas simples vão perdendo os seus lugares nas curvas do tempo.


O meu gesto das coisas simples parecia tremer de desânimo e fadiga, confundindo ingénuos impulsos com efemérides de granito e rumores de árvores dos dias felizes.


O meu gesto das coisas simples estava com medo.


Mas a nossa grande afeição há-de ser a aliança renascida entre a poesia e o gesto das coisas simples.



 

Adão Cruz



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