"O meu gesto das coisas simples" - Adão Cruz
O meu gesto das coisas simples
Fui à caixa
dos gestos e baralhei-os todos, cheio de raiva por não encontrar o meu gesto
das coisas simples.
Há muitos anos que o perdi e nunca mais consegui
encontrá-lo.
Esperemos mais um par de noites, pois os sonhos, às vezes,
trazem-nos aquilo que julgamos perdido para sempre.
Os sonhos adormecem, muitas vezes, no regaço da realidade, e
outras vezes a realidade esconde-se no meio dos sonhos.
Onde estará o meu gesto das coisas simples?
Ora bem, talvez o gesto das coisas simples ande por aí
perdido nalgum sonho.
Foi numa noite de tempestade.
Um refulgente relâmpago estralejou lá fora e faíscas de luz
incendiaram as frinchas da janela.
Um ribombante trovão abanou o quarto e o sonho foi-se.
Os sonhos não gostam de tempestades nem do abuso das
realidades.
Acendi a luz e vi no tapete o meu gesto das coisas simples.
Peguei-lhe com toda a ternura e pareceu-me que ele queria
aninhar-se entre os meus dedos.
Confesso, dei-lhe um beijinho.
Fui ao monte das recordações.
O meu gesto das coisas simples espremeu uma lágrima quando
lhe mostrei as coisas esquecidas, abandonadas, desde os tempos em que nós os
dois éramos apenas simples.
O entrosamento das palavras e das imagens das coisas simples
teciam uma espécie de fábula que deliciava a nossa inocência.
Às curvas do tempo não é fácil reter as coisas simples, e,
como o amor, as coisas simples vão perdendo os seus lugares nas curvas do
tempo.
O meu gesto das coisas simples parecia tremer de desânimo e
fadiga, confundindo ingénuos impulsos com efemérides de granito e rumores de
árvores dos dias felizes.
O meu gesto das coisas simples estava com medo.
Mas a nossa grande afeição há-de ser a aliança renascida
entre a poesia e o gesto das coisas simples.
Adão Cruz
Divulgando o último livro do autor do blog Aqui
0 comentários:
Postar um comentário