quarta-feira, 23 de março de 2022

"Carta aos" - Affonso Romano de Sant’Anna

 




Carta aos

 

 

 

 

 

 



Carta aos


Mortos


Amigos, nada


mudou


em essência.


Os salários


mal dão para os gastos,


as guerras não terminaram


e há vírus novos e terríveis,


embora o avanço da medicina.


Volta e meia um vizinho


tomba morto por questão de amor.


Há filmes interessantes, é verdade,


e como sempre, mulheres portentosas


nos seduzem com suas bocas e pernas,


mas em matéria de amor


não inventamos nenhuma posição nova.


Alguns cosmonautas ficam no espaço


seis meses ou mais, testando a engrenagem


e a solidão.


Em cada olimpíada há recordes previstos


e nos países, avanços e recuos sociais.


Mas nenhum pássaro mudou seu canto


com a modernidade.


Reencenamos


as mesmas tragédias gregas,


relemos o Quixote, e a primavera


chega pontualmente cada ano.


Alguns hábitos,


rios e florestas


se perderam.


Ninguém mais coloca cadeiras na calçada


ou toma a fresca da tarde,


mas temos máquinas velocíssimas


que nos dispensam de pensar.


Sobre o desaparecimento


dos dinossauros


e a formação das galáxias


não avançamos nada.


Roupas vão e voltam com as modas.


Governos fortes caem, outros se levantam,


países se dividem


e as formigas e abelhas continuam


fiéis ao seu trabalho.


Nada mudou


em essência.


Cantamos parabéns


nas festas,


discutimos futebol na esquina


morremos em estúpidos desastres


e volta e meia


um de nós olha o céu quando estrelado


com o mesmo pasmo das cavernas.


E cada geração, insolente,


continua a achar


que vive no ápice da história.

 




 

 

 

 

Affonso Romano de Sant’Anna

 



 

 

 

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