Afonso dos Santos: Poeta marítimo mirando o azul
Poeta marítimo mirando o azul
Por Afonso dos
Santos
Qualquer
leitor minimamente atento não poderá deixar de notar a presença constante do
mar e do azul, no livro de poesia de José Pastor intitulado “Com a Saliva Muito
ao Sul”.
Sou marítimo, e não deixo / de ser coral, e como as aves / endoideço com o
azul.
Este azul é
o azul do céu, é o azul da luz.
Os temas que
são predominantes em qualquer livro reflectem-se inevitavelmente na frequência
com que ocorrem no livro as palavras que designam esses mesmos temas. E a
palavra “luz” é uma das palavras com maior presença neste livro.
A luz que
percorre estes poemas ilumina, dentro de nós, os nossos sentimentos mais
profundos, que tantas vezes soterramos e deixamos moribundos na azáfama da
correnteza dos dias.
Mas a
palavra que aparece muito mais do que qualquer outra é a palavra “amor” e
também o verbo “amar”. E não poderia ser de outro modo, visto que esta é poesia
de amor: amor pelo mundo, amor pela vida, amor pelo ser amado, amor
sentimental, amor sensual, amor arrebatado.
O amor devora-me / e planta-me de astros.
Mais adiante,
no mesmo poema, o poeta diz:
Demorado edifício inacabado / e sempre pronto a ruir.
E o
desabamento do edifício do amor pode, por vezes, ser fatal, como se a ligação
entre amor e morte fosse mais forte do que a simples coincidência entre as três
últimas letras da primeira destas duas palavras e as três primeiras letras da
segunda, e o fim do amor fosse irremediavelmente o indício do início da morte. Mas
a palavra “morte” é uma das menos assíduas neste livro.
Esta é uma
poesia povoada de pássaros e ninhos. E também há búzios, esse outro tipo de
ninho, tanto pela sua forma como pela sua vocação de ser aconchegado abrigo.
Por onde passo deixo abelhas, / mel, estrelas / e teço outros ninhos /
atrás da orelha azul dos mares / e nascem búzios.
E os
pássaros são, como se sabe, o símbolo da ancestral aspiração do ser humano:
voar; ir mais além; alcançar o horizonte.
Para além
dos pássaros na sua designação genérica, nestes poemas perpassam a andorinha, a
cotovia, o melro, o corvo, o pavão e pardais, xiricos pombas, gaivotas,
cegonhas. E ecoa o canto do cisne.
Também a inspiração
marítima do poeta está sempre presente ao longo deste livro.
E o náufrago delirando na jangada / bramando contra o excessivo azul / do
mar e do céu e por se ver impotente / frente a uma imponente janela.
Neste livro de José Pastor encontramos a demonstração do
que é exercer a arte poética.
A criação artística literária é muito mais do que a
simples produção de um texto escrito. Se fosse só isso, qualquer alfabetizado
que escreva seria um escritor.
Com alguma frequência, vemos que é apresentado um produto
como sendo uma obra de arte (poesia, prosa, pintura, escultura, canção) e
ouvimos o seu fabricante a dizer que esse produto retrata a realidade e que ele
se inspirou no dia-a-dia da sociedade. Mas o que vemos nós ali, para
além do que nós próprios podemos observar quando olhamos à nossa volta?
Retratar a
realidade não é arte, é reportagem de tipo jornalístico. Mas a arte não é
reportagem. A arte é uma transfiguração da realidade produzida pela capacidade
criadora e pela sensibilidade singular de um autor. O criador de arte não se inspira na
realidade, inspira-se na visão singular que a sua subjectividade lhe cria sobre
essa realidade.
É por isso que nem todos somos criadores de arte. A
realidade que está diante de nós é a mesma, nós próprios somos parte dela, e
cada um olha para ela à sua maneira, mas, em geral, olha de uma forma comum ou
vulgar.
O criador de arte vê mais além, vê o que podia ter sido e
o que poderá vir a ser e revela-nos a realidade sob uma luz que é simultaneamente
encantatória e inquietante, que nos permite ver o que ainda não tínhamos
vislumbrado.
É a vivência subjectiva do poeta e o seu saber que lhe
criam uma mundividência peculiar.
Não sabes dos livros que li / com minuciosidade, das oportunidades / da
vida que desperdicei, / dos amores que pus de lado.
Neste livro
podemos também encontrar vários exemplos do trabalho poético entendido como uma
busca de musicalidade das palavras, combinando melodiosamente as sílabas, como
se estas fossem notas de música. Um dos exemplos é este:
E minha língua salta / solta na saliva / da doce e terna poesia.
Outro
exemplo é este:
Música de um oceano ofegante, / afogado de água.
E ainda e
sempre, o azul.
Ó céu da Pátria, tão azul, / tão denso, tão baixo, / se os pássaros fazem ninhos
/ na folhagem da tua grandeza / não dou por isso.
Alucinado
pelo azul, o poeta marítimo imaginou ser um poeta alado.
Por isso eu vou / para ti com a pureza das minhas asas. / E fico luz a
transformar-se em corpo que sente.
E o poeta
marítimo desfraldou as asas, levantou voo, “como se fosse uma ave tomando o
rumo da água, procurando o rumor do azul”, rumou “em direcção ao estrepitar de
um poema”, traçou no céu um rasto de luz e mergulhou doidamente nas profundezas
das águas primordiais, retornando “ao princípio daquilo que nunca fomos”, e
tocando, “de manso, no fim do que jamais seremos”: imortais.
Fonte: Jornal "Canal de Moçambique", 23/03/2022, pág. 26.
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