quarta-feira, 23 de março de 2022

Afonso dos Santos: Poeta marítimo mirando o azul

 





Poeta marítimo mirando o azul


 

Por Afonso dos Santos


 

Qualquer leitor minimamente atento não poderá deixar de notar a presença constante do mar e do azul, no livro de poesia de José Pastor intitulado “Com a Saliva Muito ao Sul”.


Sou marítimo, e não deixo / de ser coral, e como as aves / endoideço com o azul.


Este azul é o azul do céu, é o azul da luz.


Os temas que são predominantes em qualquer livro reflectem-se inevitavelmente na frequência com que ocorrem no livro as palavras que designam esses mesmos temas. E a palavra “luz” é uma das palavras com maior presença neste livro.


A luz que percorre estes poemas ilumina, dentro de nós, os nossos sentimentos mais profundos, que tantas vezes soterramos e deixamos moribundos na azáfama da correnteza dos dias.


Mas a palavra que aparece muito mais do que qualquer outra é a palavra “amor” e também o verbo “amar”. E não poderia ser de outro modo, visto que esta é poesia de amor: amor pelo mundo, amor pela vida, amor pelo ser amado, amor sentimental, amor sensual, amor arrebatado.


O amor devora-me / e planta-me de astros.


Mais adiante, no mesmo poema, o poeta diz:


Demorado edifício inacabado / e sempre pronto a ruir.


E o desabamento do edifício do amor pode, por vezes, ser fatal, como se a ligação entre amor e morte fosse mais forte do que a simples coincidência entre as três últimas letras da primeira destas duas palavras e as três primeiras letras da segunda, e o fim do amor fosse irremediavelmente o indício do início da morte. Mas a palavra “morte” é uma das menos assíduas neste livro.


Esta é uma poesia povoada de pássaros e ninhos. E também há búzios, esse outro tipo de ninho, tanto pela sua forma como pela sua vocação de ser aconchegado abrigo.


Por onde passo deixo abelhas, / mel, estrelas / e teço outros ninhos / atrás da orelha azul dos mares / e nascem búzios.


E os pássaros são, como se sabe, o símbolo da ancestral aspiração do ser humano: voar; ir mais além; alcançar o horizonte.


Para além dos pássaros na sua designação genérica, nestes poemas perpassam a andorinha, a cotovia, o melro, o corvo, o pavão e pardais, xiricos pombas, gaivotas, cegonhas. E ecoa o canto do cisne.


Também a inspiração marítima do poeta está sempre presente ao longo deste livro.


E o náufrago delirando na jangada / bramando contra o excessivo azul / do mar e do céu e por se ver impotente / frente a uma imponente janela.


Neste livro de José Pastor encontramos a demonstração do que é exercer a arte poética.


A criação artística literária é muito mais do que a simples produção de um texto escrito. Se fosse só isso, qualquer alfabetizado que escreva seria um escritor.


Com alguma frequência, vemos que é apresentado um produto como sendo uma obra de arte (poesia, prosa, pintura, escultura, canção) e ouvimos o seu fabricante a dizer que esse produto retrata a realidade e que ele se inspirou no dia-a-dia da sociedade. Mas o que vemos nós ali, para além do que nós próprios podemos observar quando olhamos à nossa volta?


Retratar a realidade não é arte, é reportagem de tipo jornalístico. Mas a arte não é reportagem. A arte é uma transfiguração da realidade produzida pela capacidade criadora e pela sensibilidade singular de um autor. O criador de arte não se inspira na realidade, inspira-se na visão singular que a sua subjectividade lhe cria sobre essa realidade.


É por isso que nem todos somos criadores de arte. A realidade que está diante de nós é a mesma, nós próprios somos parte dela, e cada um olha para ela à sua maneira, mas, em geral, olha de uma forma comum ou vulgar.


O criador de arte vê mais além, vê o que podia ter sido e o que poderá vir a ser e revela-nos a realidade sob uma luz que é simultaneamente encantatória e inquietante, que nos permite ver o que ainda não tínhamos vislumbrado.


É a vivência subjectiva do poeta e o seu saber que lhe criam uma mundividência peculiar.


Não sabes dos livros que li / com minuciosidade, das oportunidades / da vida que desperdicei, / dos amores que pus de lado.


Neste livro podemos também encontrar vários exemplos do trabalho poético entendido como uma busca de musicalidade das palavras, combinando melodiosamente as sílabas, como se estas fossem notas de música. Um dos exemplos é este:


E minha língua salta / solta na saliva / da doce e terna poesia.


Outro exemplo é este:


Música de um oceano ofegante, / afogado de água.


E ainda e sempre, o azul.


Ó céu da Pátria, tão azul, / tão denso, tão baixo, / se os pássaros fazem ninhos / na folhagem da tua grandeza / não dou por isso.


Alucinado pelo azul, o poeta marítimo imaginou ser um poeta alado.


Por isso eu vou / para ti com a pureza das minhas asas. / E fico luz a transformar-se em corpo que sente.


E o poeta marítimo desfraldou as asas, levantou voo, “como se fosse uma ave tomando o rumo da água, procurando o rumor do azul”, rumou “em direcção ao estrepitar de um poema”, traçou no céu um rasto de luz e mergulhou doidamente nas profundezas das águas primordiais, retornando “ao princípio daquilo que nunca fomos”, e tocando, “de manso, no fim do que jamais seremos”: imortais.



Fonte: Jornal "Canal de Moçambique", 23/03/2022, pág. 26.


0 comentários:

  © Blogger template 'Solitude' by Ourblogtemplates.com 2008

Back to TOP