quarta-feira, 1 de setembro de 2021

"Rumor dos fogos" - Al Berto

 




Rumor dos fogos



 

 

 

hoje à noite avistei sobre a folha de papel


o dragão em celuloide da infância


escuro como o interior polposo das cerejas


antigo como a insónia dos meus trinta e cinco anos...




dantes eu conseguia esconder-me nas paisagens


podia beber a humidade aérea do musgo


derramar sangue nos dedos magoados


foi há muito tempo


quando corria pelas ruas sem saber ler nem escrever


o mundo reduzia-se a um berlinde


e as mãos eram pequenas


desvendavam os noturnos segredos dos pinhais




não quero mais perceber as palavras nem os corpos


deixou de me pertencer o choro longínquo das pedras


prossigo caminho com estes ossos cor de malva


som a som o vegetal silêncio sílaba a sílaba o abandono


desta obra que fica por construir... o receio


de abrir os olhos e as rosas não estarem onde as sonhei


e teu rosto ter desaparecido no fundo do mar




ficou-me esta mão com sua sombra de terra


sobre o papel branco... como é louca esta mão


tentando aparar a tristeza antiga das lágrimas



 

 

Al Berto



 

 

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