segunda-feira, 13 de setembro de 2021

"A lição de poesia" - João Cabral de Melo Neto

 




A lição de poesia

 




1.Toda a manhã consumida


como um sol imóvel


diante da folha em branco:


princípio do mundo, lua nova.




Já não podias desenhar


sequer uma linha;


um nome, sequer uma flor


desabrochava no verão da mesa:




nem no meio-dia iluminado,


cada dia comprado,


do papel, que pode aceitar,


contudo, qualquer mundo.




2. A noite inteira o poeta


em sua mesa, tentando


salvar da morte os monstros


germinados em seu tinteiro.




Monstros, bichos, fantasmas


de palavras, circulando,


urinando sobre o papel,


sujando-o com seu carvão.




Carvão de lápis, carvão


da ideia fixa, carvão


da emoção extinta, carvão


consumido nos sonhos.




3. A luta branca sobre o papel


que o poeta evita,


luta branca onde corre o sangue


de suas veias de água salgada.




A física do susto percebida


entre os gestos diários;


susto das coisas jamais pousadas


porém imóveis — naturezas vivas.




E as vinte palavras recolhidas


nas águas salgadas do poeta


e de que se servirá o poeta


em sua máquina útil.




Vinte palavras sempre as mesmas


de que conhece o funcionamento,


a evaporação, a densidade


menor que a do ar.




 

 

 

 

João Cabral de Melo Neto



 

 

 

 

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