"A lição de poesia" - João Cabral de Melo Neto
A lição de poesia
1.Toda a manhã consumida
como
um sol imóvel
diante
da folha em branco:
princípio
do mundo, lua nova.
Já
não podias desenhar
sequer
uma linha;
um
nome, sequer uma flor
desabrochava
no verão da mesa:
nem
no meio-dia iluminado,
cada
dia comprado,
do
papel, que pode aceitar,
contudo,
qualquer mundo.
2.
A noite inteira o poeta
em
sua mesa, tentando
salvar
da morte os monstros
germinados
em seu tinteiro.
Monstros,
bichos, fantasmas
de
palavras, circulando,
urinando
sobre o papel,
sujando-o
com seu carvão.
Carvão
de lápis, carvão
da
ideia fixa, carvão
da
emoção extinta, carvão
consumido
nos sonhos.
3.
A luta branca sobre o papel
que
o poeta evita,
luta
branca onde corre o sangue
de
suas veias de água salgada.
A
física do susto percebida
entre
os gestos diários;
susto
das coisas jamais pousadas
porém
imóveis — naturezas vivas.
E
as vinte palavras recolhidas
nas
águas salgadas do poeta
e
de que se servirá o poeta
em
sua máquina útil.
Vinte
palavras sempre as mesmas
de
que conhece o funcionamento,
a
evaporação, a densidade
menor
que a do ar.
João Cabral
de Melo Neto
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