quarta-feira, 22 de setembro de 2021

"Esse grande simulacro" - Mario Benedetti

 




Esse grande simulacro




Cada vez que nos dão lições de amnésia


como se nunca houvesse existido


os ardentes olhos da alma


ou os lábios da pena órfã


cada vez que nos dão aulas de amnésia


e nos obrigam a apagar


a embriaguez do sofrimento


convenço-me de que meu território


não é a ribalta de outros



Em meu território há martírios de ausência


resíduos de sucessos / subúrbios enlutados


mas também singelezas de rosa


pianos que arrancam lágrimas


cadáveres que ainda olham de seus hortos


lembranças imóveis em um poço de colheitas


sentimentos insuportavelmente atuais


que se negam a morrer no escuro



O esquecimento está tão cheio de memória


que às vezes não cabem as lembranças


e rancores precisam ser jogados pela borda


no fundo o esquecimento é um grande simulacro


ninguém sabe nem pode / ainda que queira / esquecer


um grande simulacro abarrotado de fantasmas


esses romeiros que peregrinam pelo esquecimento


como se fosse o caminho de santiago



o dia ou a noite em que o esquecimento estale


exploda em pedaços ou crepite /


as lembranças atrozes e as de maravilhamento


quebrarão as trancas de fogo


arrastarão afinal a verdade pelo mundo


e essa verdade será a de que não há esquecimento



 

Mario Benedetti



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