LIVRO - "Labirintos do Amor e Outros Sonetos" - Alfredo de Sousa Pereira
2021
PREFÁCIO
José de Sousa Miguel Lopes
O
que dizer de uma frase assim: a poesia existe para satisfazer a necessidade de
poesia dos poetas? Escândalo, loucura e anátema! […] Poeta não é só quem faz
poesia. É também quem tem sensibilidade para entender e curtir poesia. Mesmo
que nunca tenha arriscado um verso. Quem não tem senso de humor, nunca vai
entender a piada. E concluo: – Tem que ter tanta poesia no receptor quanto no
emissor. […] Saúde a vocês que fazem, saúde a vocês que curtem, polos
magnéticos por onde passa a faísca da poesia.
Paulo Leminski
Ao longo do tempo, os poetas e os filósofos preocuparam-se em definir a poesia. Para o poeta espanhol García Lorca, “Todas as coisas têm seu mistério, e a poesia é o mistério que todas as coisas têm”.
É quase um desaforo tentar ensinar regras a alguém que
pretende escrever um poema, onde cada verso produzido resulta de uma inspiração
que, além de individual, é uma manifestação do pensamento livre. Em outras
palavras, não dá para dizer a um poeta "seja metódico em seus versos".
Na epígrafe de Paulo Leminski que abre este Prefácio, o poeta
diz que “tem que ter tanta poesia no receptor quanto no emissor”. Esta simbiose
parece ocorrer no momento em que se tem acesso ao texto poético de Sousa
Pereira.
No seu livro, o autor utiliza integralmente a forma poética
do soneto. Este termo deriva do italiano sonètto,
que significa pequena canção ou, literalmente, pequeno som. É uma obra curta
criada para transmitir uma mensagem em seus catorze versos, divididos em dois
quartetos (grupos de quatro versos) e dois tercetos (três versos), ou três
quartetos e um dístico (dois versos).
O soneto, embora seja uma forma poética clássica do gênero
lírico, nunca deixou de receber atenção de poetas em todo o mundo, mesmo quando
o Romantismo deu início ao culto do verso branco, ou seja, versos que possuem
métrica, mas não possuem rima.
O soneto sobreviveu ao tempo, um caso único na literatura,
pois não há nenhum outro modelo literário tão longevo quanto ele. Na língua
portuguesa esta forma encontrou diversos representantes, entre eles Augusto dos
Anjos, Cruz e Sousa, Luís Vaz de Camões, Manuel Maria Du Bocage, Olavo Bilac,
Vinícius de Moraes, Antero de Quental e Florbela Espanca, apenas para mencionar
alguns.
O soneto foi, e é, um Sol que surgiu na Idade
Média, período-base das literaturas ocidentais, para se projetar pelos séculos
afora, tornado, enfim, o único poema de forma fixa que ainda subsiste.
Quase ao término da longa noite medieval — noite em
que se ostentaram inúmeras estrelas luminosas — nasceu a maior delas, o soneto,
com um destino de magia, capaz de perenizá-lo, como, incontestavelmente, vem
acontecendo.
Nasceu quando já esmaeciam as vozes remotas e
incipientes das civilizações primitivas; e quando a prodigiosa Grécia de Homero
e Platão, e a extraordinária Roma de Virgílio e Horácio eram, apenas, saudosas
e gratas lembranças. Lembranças que, aliás, perduram, mesmo em se considerando
o poderio de outras grandes literaturas despontadas a partir da Renascença.
Na verdade, os puristas condenam esse “modernismo” e afirmam
estarem os novos generalizando o conceito de soneto e que, ao distribuírem suas
redações em dois blocos de quatro linhas e em dois blocos de três linhas,
tentam fazer sonetos, sem jamais o conseguir, pois dizia Pedro Ivo: “Não se faz
um soneto, ele acontece e irrompe da alquimia do que somos, subindo às altas
torres do não-ser”.
Os sonetos atravessaram a história, vencendo prisões e
guerras, cantando o amor e a arte. Tornaram-se o vício de uma geração. Rimando
ou não, tocaram (e tocam) corações por todas as culturas e países. Ao mesmo
tempo curtos e elaborados, eles são sem dúvida a expressão maior da dedicação
de escrever versos.
E é essa dedicação que encontramos no nosso poeta Sousa
Pereira que enveredou por uma das mais complexas composições líricas de forma
fixa que é o soneto.
Ao aventurar-se por este terreno versificatório, o autor mergulha
no ofício
poético seguindo a tradição. Realiza essa operação através do arranjo de
elementos linguísticos no espaço do texto por meio da feitura de experimentos
rítmicos com a matéria linguística. Nesse sentido, seus poemas, assim como
acontece com um quadro ou uma peça de música, constituem-se em objetos de arte
inseridos em uma tradição histórica composicional, podendo ser considerados
como objetos de arte possíveis de serem analisados formalmente.
Como é sabido, o último componente importante de um soneto é
a sonoridade, isto é, onde estão as sílabas tônicas (ou fortes) de cada verso.
Quando combinadas, essas sílabas fazem com que o soneto se pareça com uma suave
canção. Isso fica patente nos sonetas que o autor, laboriosamente, apresenta no
seu livro.
Pode-se ainda indagar o que mais torna um soneto possível? Sem
a pretensão de ser exaustivo, alguns elementos parecem-me essenciais,
nomeadamente a inspiração, o tema, o conhecimento das palavras e das rimas, que
serão tanto mais ricas quanto mais rico for o vocabulário do sonetista.
Como poderemos observar os poemas de
Sousa Pereira possibilitam contatos do sujeito lírico com paisagens múltiplas
que se tornam desterritorializadas pela iminência de encontros entre espaços do
presente com os do passado.
Em
relação às temáticas tratadas pelo autor pode-se observar que embora aborde
vários temas (pessoas, comemorações, datas festivas e críticas a pessoas ou
acontecimentos) o tema do amor é avassalador. Mais concretamente, nos sonetos é
celebrada a mulher amada, o amor não correspondido, o amor que foi tão
envolvente, mas que, com o tempo, acaba se fraturando quando uma das partes
abandona a outra.
Amar e ser amado é uma das melhores sensações que existem, mas o
sentimento pode ficar bem mais complicado quando alguém sente não merecer o
amor que dá à pessoa amada. Isso é visível no poema “Pensar em ti”: A pensar em ti me
deito,/Pensando em ti me levanto;/E por te querer assim tanto/Andas sempre no
meu peito.(...) Eu te queria de um só jeito/Que me levou entretanto/A portar-me
como um santo/E a ver-te um amor-perfeito.(...) Lembro-te sempre ao deitar/E ao
levantar não te esqueço;/Só quero a teu lado estar (...) E à razão não
obedeço./Gasto a vida a desejar/Um amor que não mereço. (p.42).
Na
pág. 93 o poeta nos presenteia como o poema “Se a saudade matasse”: Apesar de quase toda a saudade carregar
consigo certa melancolia, por remeter a alguma falta, a raiz desse sentimento
vem sempre a partir de uma lembrança boa, afinal, ninguém quer reviver aquilo
que lhe fez mal. A saudade pode ser/Uma
doce sensação,/Bálsamo pró coração,/Algo de bom a valer./A saudade pode ser/Uma
má recordação,/Ou enganosa paixão,/Lembrança de um bem-querer./Se a saudade
disfarçasse/O que eu por ti sentia/E o coração me enganasse,/Eu nunca
suportaria./Que, se a saudade matasse,/Eu morria a cada dia.
A paixão amorosa preenche
inteiramente o dia-a-dia do poeta como se pode ver no poema “Não venhas tarde” onde sua urdidura é
tocante. Meu amor, esta fogueira,/Em que meu coração arde,/Porque chegaste mui
tarde,/Pará-la não há maneira./Esperava-te mais cedo./Demoraste tanto, tanto
…/Que se me acabasse o pranto/Eu fiquei com muito medo./Seja cedo ou seja
tarde,/O importante é que venhas/E meu coração te aguarde./A razão do meu
sofrer/E as saudades que de mim tenhas,/Acabarão por morrer.(p.125).
Não pode deixar de chamar a atenção o poema
“Ao acaso” que é um surpreendente
achado de criatividade. Se acaso se der o
caso/D’escrever algo ao acaso,/Não deve ser por acaso/Que escrevo sobre este
caso./Posso ser um cabo-raso,/Surgir com algum atraso,/Mas não será por
acaso/Que, se quiseres, eu arraso./Mas não faças disso um caso,/Seja qual for o
teu prazo,/Nada farei ao acaso./Se por acaso me atraso,/É por bem, não faças
caso,/Porque é contigo que eu caso. (p.123). Constata-se aqui o uso
inovador, imprevisto, inusitado das possibilidades do código da língua. O poeta
brinca com as palavras numa fluidez estonteante.
Prestemos atenção ao poema “Fim do sofrimento” onde o poeta
manifesta o modo como o amor não correspondido causa sofrimento:
Sinto que não há tanto
sofrimento,/Minha dor vai ficando mais pequena/E da imensa dor que me condena/E
que era a causa mor do meu tormento,/Se vai aliviando na lembrança/E passo a
ter algum contentamento,/Que leve até ao rio do esquecimento./Mas se o Mundo
todo ele é uma mudança,/Antes que eu esqueça quem me esqueceu/E antes que os
meus olhos se entristeçam/E meu coração chore o que perdeu,/Desejo que amores
não desmereçam,/Que o teu maior Amor seja só eu/E que, dos meus, teus lábios
nunca esqueçam. (p. 153).
Os amores não correspondidos fazem
parte da vida de muitos seres humanos, sendo, pois, uma situação bastante
comum. Mas, essa alta frequência não torna o acontecimento fácil de lidar,
muito pelo contrário. Quando o outro não possui o mesmo amor que nós e não tem
a mesma vontade de manter um relacionamento, a frustração é o primeiro
sentimento que emerge e isso está explicitado de forma sofrida no poema
“Memórias” no qual o autor empreende
uma viagem no tempo, revelando histórias de sofrimento, mas que o mais
importante é dizer sempre a verdade. E que verdade é essa? A sua loucura
amorosa para com a mulher amada. Quando
um dia escrever minhas memórias,/Quem me sobreviver então verá/Como andei por
aí ao deus-dará./Quão penosas me são certas estórias./Talvez alguém as ache
aleatórias,/Mas isso p’ra mim tanto se me dá;/Não posso imaginar-te coisa
má./Poderão até ser contraditórias./Melhor é não saberem o que eu sinto/Nem tão
pouco saber o que preciso;/Se puder vou seguir o meu instinto,/Amar-te sempre,
eu quero, e sem aviso/Dizer a toda a gente que não minto/E que, por ti, perdi
todo o juízo. (p.216).
No
poema “Do zero ao infinito” o autor
faz uma digressão filosófica na qual reverbera quão ínfimo é o ser humano que,
em fração de segundos, retorna ao nada, se transforma em fumo. Um alerta
perturbador sobre a precariedade da existência humana. Vejamos: “Nada” não é só peixe/Nem também coisa
nenhuma/Pode ser tudo; num feixe,/Que num segundo se esfuma./“O que existe” vem
do zero/E o zero é igual a nada;/Por isso aqui reverbero:/O zero é obra
acabada./Do zero, afinal, vem tudo,/Sem condicionamento;/“Nada”, tem seu
conteúdo./Sem ser um feito inaudito/Fácil é ao pensamento/Ir do zero ao
infinito. (pág. 248).
Sousa
Pereira recorre também ao humor e o faz de forma refinada ao escolher como
personagem o “Funcionário público” esse
ser quantas vezes merecidamente criticado pelo seu relaxamento no atendimento ao
público a quem deve servir e, concomitantemente, pensando apenas no seu próprio
salário. Ouçamos o poeta: Todo e qualquer
funcionário/Quer bem ou mal comportado,/Tem em mente o imaginário/Dum grande e
bom ordenado./Quer bom ou mau funcionário,/Se é daqueles que se “preza”,/Vive
d’olho no calendário/E a todos os santos reza/E diz com santa inocência,/Com
prazer e todo o gosto/Só lh’interessar o ordenado/E nem pensar em falência,/P’ra
não perder o seu posto/E assim viver descansado. (p.260).
E
o humor volta à cena no poema “Herrar é o
mano” no qual o autor utiliza de forma brilhante o trocadilho da palavra
Herrar com a palavra mano. Impensável que o leitor não seja tomado pela gargalhada.
Reparem: Há quem se engane sem
querer/Porque não gosta de errar;/E há quem erre por não saber/E nem sabe
justificar./Não sei se houve algum engano/Qual o nome, quis saber,/Que iriam
pôr ao meu mano,/Que acabara de nascer./O nome que lhe vão dar,/Podem crer, não
há engano;/Seu nome será Herrar,/Não é Sicrano ou Beltrano,/E assim se irá
registar./Portanto, Herrar é o mano. (p. 267).
A
seara política não é estranha ao autor. Com efeito, no poema “Irrevogável e voltar atrás” ele lança
mão da crítica aos políticos portugueses e seus jogos de palavras que mais
confundem os seus eleitores do que os esclarecem: Devagar, devagarinho,/E as mesmas ambições,/Vão pelo mesmo caminho,/E a
pensar em eleições./E dizem coisas bem tortas,/Sem querer ouvir
conselho;/Primeiro foi Paulo Portas,/Depois foi Passos Coelho./Um diz que é
irrevogável/E que não há volta a dar/E a saída é inevitável,/E o outro, que é
mais sagaz,/Depois da palavra dar/Diz não ir voltar atrás. (p. 285).
E
a veia humorística apresenta-se agora em outro território, o das relações
afetivas objetivadas no beijo. Para isso, Sousa Pereira instaura o “Dia Mundial do Beijo” e sugere um método
para burlar o impedimento dos beijos na pandemia. Um beijo, oh
quem me dera,/Que não pareça ilusão,/Nem sequer sonho ou quimera,/P’ràlegrar o
coração./Se não for um verdadeiro/Mas apenas virtual,/Pode ser último ou
primeiro/O sentimento é igual./Se não se pode beijar/Por causa da pandemia/Já
que é perigoso e faz mal/Mandemos beijos prò ar,Pra que não passe um só dia/Sem
beijos, isso era o ideal. (p.288).
Em
tempos de covid o poeta não ignora a tragédia que se abateu sobre a sociedade.
O poema “Fim de ano I” revela esse
momento difícil e os cuidados inerentes que todos temos de enfrentar: Dia 31
dezembro/Dia triste, feio e frio,/Como jamais alguém viu,/É do que, pra já, me
lembro./Fim de um ano sem igual,/Todo o Mundo amordaçado,/Todo rosto
mascarado,/Mais parecendo Carnaval./Vem já desde o mês de março/Num constante
amortalhar./Se com máscara me disfarço,/Prò vírus não me “apanhar”,/Visto andar
por aí esparso,/Vou ter de me acautelar. (p.311).
Nesta breve digressão pela poética de Sousa Pereira
pode-se constatar a universalidade, a pluralidade e a multiplicidade de imagens
que lançam luz sobre fragmentos do cotidiano, da cultura e da sociedade.
É essa, pois, uma poética que evoca o tempo
presente pelo fato de lembrar, o passado pelo ato lembrado, e o futuro pela constante
atualização do por vir, de modo que o tempo é um fator imanente a tudo. Esse
fato ressalta, na poesia de Sousa Pereira, uma consciência do espaço e do ser
das coisas, ao assumir paradoxos capazes de plasmar esses e outros mundos tão
próximos e tão distantes, que necessitam de muitos futuros para serem
descobertos.
A leitura do texto poético permite, nesse sentido,
verificar tanto o condicionamento social da obra quanto o vínculo entre a obra
e o ambiente, o que evidencia como alguns fatores externos atuam na organização
interna, isto é: de como o social oferece a matéria que, em algum nível,
manifesta-se na realização estética.
É uma poesia que pretende seduzir o leitor a partir
do seu aspecto lúdico e encantatório. Além disso, possibilita uma leitura
rápida e imediata, uma das necessidades do leitor médio e contemporâneo.
Podemos inferir que os poetas buscam em outros aqueles
elementos que têm algumas sintonias com o seu processo criativo. Assim, a
tradição serve tanto como um parâmetro criativo quanto para legitimar novas
práticas poéticas. A leitura que o autor realizou dos seus pares – seja pelo
viés da desleitura/, tresleitura e contraleitura – o permitiu encontrar a si
mesmo e esboçar a sua dicção, fundada seja na negação ou na afirmação dos
preceitos que regem o engenho daqueles que leu.
Todo o poeta, todo o artista é artesão de uma
linguagem. Mas o artesanato das artes poéticas não nasce de si mesmo, isto é, da
relação com uma matéria, como nas artes artesanais. O artesanato das artes
poéticas nasce da própria poesia.
As formas de perceber e retratar o espaço revelam,
na sua poesia, ideias como a de pertencimento e a maneira de estar no mundo.
Em lógica consequência, só resta explicitar o
desejo de compartilhar com os leitores a aventura poética que nos é apresentada
neste livro de Sousa Pereira que só lido poderá transmitir a verdadeira
dimensão de sua arte. Faço votos de uma muito feliz e não menos proveitosa e
prazerosa leitura.
Belo Horizonte, 19/06/2021
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