domingo, 12 de setembro de 2021

LIVRO - "Labirintos do Amor e Outros Sonetos" - Alfredo de Sousa Pereira


Editora Templários


2021



PREFÁCIO 


 José de Sousa Miguel Lopes




 

O que dizer de uma frase assim: a poesia existe para satisfazer a necessidade de poesia dos poetas? Escândalo, loucura e anátema! […] Poeta não é só quem faz poesia. É também quem tem sensibilidade para entender e curtir poesia. Mesmo que nunca tenha arriscado um verso. Quem não tem senso de humor, nunca vai entender a piada. E concluo: – Tem que ter tanta poesia no receptor quanto no emissor. […] Saúde a vocês que fazem, saúde a vocês que curtem, polos magnéticos por onde passa a faísca da poesia.


Paulo Leminski



 




Ao longo do tempo, os poetas e os filósofos preocuparam-se em definir a poesia. Para o poeta espanhol García Lorca, “Todas as coisas têm seu mistério, e a poesia é o mistério que todas as coisas têm”. 



É quase um desaforo tentar ensinar regras a alguém que pretende escrever um poema, onde cada verso produzido resulta de uma inspiração que, além de individual, é uma manifestação do pensamento livre. Em outras palavras, não dá para dizer a um poeta "seja metódico em seus versos".



Na epígrafe de Paulo Leminski que abre este Prefácio, o poeta diz que “tem que ter tanta poesia no receptor quanto no emissor”. Esta simbiose parece ocorrer no momento em que se tem acesso ao texto poético de Sousa Pereira.



No seu livro, o autor utiliza integralmente a forma poética do soneto. Este termo deriva do italiano sonètto, que significa pequena canção ou, literalmente, pequeno som. É uma obra curta criada para transmitir uma mensagem em seus catorze versos, divididos em dois quartetos (grupos de quatro versos) e dois tercetos (três versos), ou três quartetos e um dístico (dois versos).



O soneto, embora seja uma forma poética clássica do gênero lírico, nunca deixou de receber atenção de poetas em todo o mundo, mesmo quando o Romantismo deu início ao culto do verso branco, ou seja, versos que possuem métrica, mas não possuem rima.



O soneto sobreviveu ao tempo, um caso único na literatura, pois não há nenhum outro modelo literário tão longevo quanto ele. Na língua portuguesa esta forma encontrou diversos representantes, entre eles Augusto dos Anjos, Cruz e Sousa, Luís Vaz de Camões, Manuel Maria Du Bocage, Olavo Bilac, Vinícius de Moraes, Antero de Quental e Florbela Espanca, apenas para mencionar alguns.



O soneto foi, e é, um Sol que surgiu na Idade Média, período-base das literaturas ocidentais, para se projetar pelos séculos afora, tornado, enfim, o único poema de forma fixa que ainda subsiste.



Quase ao término da longa noite medieval — noite em que se ostentaram inúmeras estrelas luminosas — nasceu a maior delas, o soneto, com um destino de magia, capaz de perenizá-lo, como, incontestavelmente, vem acontecendo.



Nasceu quando já esmaeciam as vozes remotas e incipientes das civilizações primitivas; e quando a prodigiosa Grécia de Homero e Platão, e a extraordinária Roma de Virgílio e Horácio eram, apenas, saudosas e gratas lembranças. Lembranças que, aliás, perduram, mesmo em se considerando o poderio de outras grandes literaturas despontadas a partir da Renascença.



Na verdade, os puristas condenam esse “modernismo” e afirmam estarem os novos generalizando o conceito de soneto e que, ao distribuírem suas redações em dois blocos de quatro linhas e em dois blocos de três linhas, tentam fazer sonetos, sem jamais o conseguir, pois dizia Pedro Ivo: “Não se faz um soneto, ele acontece e irrompe da alquimia do que somos, subindo às altas torres do não-ser”.



Os sonetos atravessaram a história, vencendo prisões e guerras, cantando o amor e a arte. Tornaram-se o vício de uma geração. Rimando ou não, tocaram (e tocam) corações por todas as culturas e países. Ao mesmo tempo curtos e elaborados, eles são sem dúvida a expressão maior da dedicação de escrever versos.



E é essa dedicação que encontramos no nosso poeta Sousa Pereira que enveredou por uma das mais complexas composições líricas de forma fixa que é o soneto.



Ao aventurar-se por este terreno versificatório, o autor mergulha no ofício poético seguindo a tradição. Realiza essa operação através do arranjo de elementos linguísticos no espaço do texto por meio da feitura de experimentos rítmicos com a matéria linguística. Nesse sentido, seus poemas, assim como acontece com um quadro ou uma peça de música, constituem-se em objetos de arte inseridos em uma tradição histórica composicional, podendo ser considerados como objetos de arte possíveis de serem analisados formalmente.



Como é sabido, o último componente importante de um soneto é a sonoridade, isto é, onde estão as sílabas tônicas (ou fortes) de cada verso. Quando combinadas, essas sílabas fazem com que o soneto se pareça com uma suave canção. Isso fica patente nos sonetas que o autor, laboriosamente, apresenta no seu livro.



Pode-se ainda indagar o que mais torna um soneto possível? Sem a pretensão de ser exaustivo, alguns elementos parecem-me essenciais, nomeadamente a inspiração, o tema, o conhecimento das palavras e das rimas, que serão tanto mais ricas quanto mais rico for o vocabulário do sonetista.



Como poderemos observar os poemas de Sousa Pereira possibilitam contatos do sujeito lírico com paisagens múltiplas que se tornam desterritorializadas pela iminência de encontros entre espaços do presente com os do passado.



Em relação às temáticas tratadas pelo autor pode-se observar que embora aborde vários temas (pessoas, comemorações, datas festivas e críticas a pessoas ou acontecimentos) o tema do amor é avassalador. Mais concretamente, nos sonetos é celebrada a mulher amada, o amor não correspondido, o amor que foi tão envolvente, mas que, com o tempo, acaba se fraturando quando uma das partes abandona a outra.



Amar e ser amado é uma das melhores sensações que existem, mas o sentimento pode ficar bem mais complicado quando alguém sente não merecer o amor que dá à pessoa amada. Isso é visível no poema “Pensar em ti”: A pensar em ti me deito,/Pensando em ti me levanto;/E por te querer assim tanto/Andas sempre no meu peito.(...) Eu te queria de um só jeito/Que me levou entretanto/A portar-me como um santo/E a ver-te um amor-perfeito.(...) Lembro-te sempre ao deitar/E ao levantar não te esqueço;/Só quero a teu lado estar (...) E à razão não obedeço./Gasto a vida a desejar/Um amor que não mereço. (p.42).



Na pág. 93 o poeta nos presenteia como o poema “Se a saudade matasse”: Apesar de quase toda a saudade carregar consigo certa melancolia, por remeter a alguma falta, a raiz desse sentimento vem sempre a partir de uma lembrança boa, afinal, ninguém quer reviver aquilo que lhe fez mal. A saudade pode ser/Uma doce sensação,/Bálsamo pró coração,/Algo de bom a valer./A saudade pode ser/Uma má recordação,/Ou enganosa paixão,/Lembrança de um bem-querer./Se a saudade disfarçasse/O que eu por ti sentia/E o coração me enganasse,/Eu nunca suportaria./Que, se a saudade matasse,/Eu morria a cada dia.



A paixão amorosa preenche inteiramente o dia-a-dia do poeta como se pode ver no poema “Não venhas tarde” onde sua urdidura é tocante. Meu amor, esta fogueira,/Em que meu coração arde,/Porque chegaste mui tarde,/Pará-la não há maneira./Esperava-te mais cedo./Demoraste tanto, tanto …/Que se me acabasse o pranto/Eu fiquei com muito medo./Seja cedo ou seja tarde,/O importante é que venhas/E meu coração te aguarde./A razão do meu sofrer/E as saudades que de mim tenhas,/Acabarão por morrer.(p.125).



Não pode deixar de chamar a atenção o poema “Ao acaso” que é um surpreendente achado de criatividade. Se acaso se der o caso/D’escrever algo ao acaso,/Não deve ser por acaso/Que escrevo sobre este caso./Posso ser um cabo-raso,/Surgir com algum atraso,/Mas não será por acaso/Que, se quiseres, eu arraso./Mas não faças disso um caso,/Seja qual for o teu prazo,/Nada farei ao acaso./Se por acaso me atraso,/É por bem, não faças caso,/Porque é contigo que eu caso. (p.123). Constata-se aqui o uso inovador, imprevisto, inusitado das possibilidades do código da língua. O poeta brinca com as palavras numa fluidez estonteante.



Prestemos atenção ao poema “Fim do sofrimento” onde o poeta manifesta o modo como o amor não correspondido causa sofrimento: Sinto que não há tanto sofrimento,/Minha dor vai ficando mais pequena/E da imensa dor que me condena/E que era a causa mor do meu tormento,/Se vai aliviando na lembrança/E passo a ter algum contentamento,/Que leve até ao rio do esquecimento./Mas se o Mundo todo ele é uma mudança,/Antes que eu esqueça quem me esqueceu/E antes que os meus olhos se entristeçam/E meu coração chore o que perdeu,/Desejo que amores não desmereçam,/Que o teu maior Amor seja só eu/E que, dos meus, teus lábios nunca esqueçam. (p. 153).



Os amores não correspondidos fazem parte da vida de muitos seres humanos, sendo, pois, uma situação bastante comum. Mas, essa alta frequência não torna o acontecimento fácil de lidar, muito pelo contrário. Quando o outro não possui o mesmo amor que nós e não tem a mesma vontade de manter um relacionamento, a frustração é o primeiro sentimento que emerge e isso está explicitado de forma sofrida no poema “Memórias” no qual o autor empreende uma viagem no tempo, revelando histórias de sofrimento, mas que o mais importante é dizer sempre a verdade. E que verdade é essa? A sua loucura amorosa para com a mulher amada. Quando um dia escrever minhas memórias,/Quem me sobreviver então verá/Como andei por aí ao deus-dará./Quão penosas me são certas estórias./Talvez alguém as ache aleatórias,/Mas isso p’ra mim tanto se me dá;/Não posso imaginar-te coisa má./Poderão até ser contraditórias./Melhor é não saberem o que eu sinto/Nem tão pouco saber o que preciso;/Se puder vou seguir o meu instinto,/Amar-te sempre, eu quero, e sem aviso/Dizer a toda a gente que não minto/E que, por ti, perdi todo o juízo. (p.216).



No poema “Do zero ao infinito” o autor faz uma digressão filosófica na qual reverbera quão ínfimo é o ser humano que, em fração de segundos, retorna ao nada, se transforma em fumo. Um alerta perturbador sobre a precariedade da existência humana. Vejamos: “Nada” não é só peixe/Nem também coisa nenhuma/Pode ser tudo; num feixe,/Que num segundo se esfuma./“O que existe” vem do zero/E o zero é igual a nada;/Por isso aqui reverbero:/O zero é obra acabada./Do zero, afinal, vem tudo,/Sem condicionamento;/“Nada”, tem seu conteúdo./Sem ser um feito inaudito/Fácil é ao pensamento/Ir do zero ao infinito. (pág. 248).



Sousa Pereira recorre também ao humor e o faz de forma refinada ao escolher como personagem o “Funcionário público” esse ser quantas vezes merecidamente criticado pelo seu relaxamento no atendimento ao público a quem deve servir e, concomitantemente, pensando apenas no seu próprio salário. Ouçamos o poeta: Todo e qualquer funcionário/Quer bem ou mal comportado,/Tem em mente o imaginário/Dum grande e bom ordenado./Quer bom ou mau funcionário,/Se é daqueles que se “preza”,/Vive d’olho no calendário/E a todos os santos reza/E diz com santa inocência,/Com prazer e todo o gosto/Só lh’interessar o ordenado/E nem pensar em falência,/P’ra não perder o seu posto/E assim viver descansado. (p.260).



E o humor volta à cena no poema “Herrar é o mano” no qual o autor utiliza de forma brilhante o trocadilho da palavra Herrar com a palavra mano. Impensável que o leitor não seja tomado pela gargalhada. Reparem: Há quem se engane sem querer/Porque não gosta de errar;/E há quem erre por não saber/E nem sabe justificar./Não sei se houve algum engano/Qual o nome, quis saber,/Que iriam pôr ao meu mano,/Que acabara de nascer./O nome que lhe vão dar,/Podem crer, não há engano;/Seu nome será Herrar,/Não é Sicrano ou Beltrano,/E assim se irá registar./Portanto, Herrar é o mano. (p. 267).



A seara política não é estranha ao autor. Com efeito, no poema “Irrevogável e voltar atrás” ele lança mão da crítica aos políticos portugueses e seus jogos de palavras que mais confundem os seus eleitores do que os esclarecem: Devagar, devagarinho,/E as mesmas ambições,/Vão pelo mesmo caminho,/E a pensar em eleições./E dizem coisas bem tortas,/Sem querer ouvir conselho;/Primeiro foi Paulo Portas,/Depois foi Passos Coelho./Um diz que é irrevogável/E que não há volta a dar/E a saída é inevitável,/E o outro, que é mais sagaz,/Depois da palavra dar/Diz não ir voltar atrás. (p. 285).



E a veia humorística apresenta-se agora em outro território, o das relações afetivas objetivadas no beijo. Para isso, Sousa Pereira instaura o “Dia Mundial do Beijo” e sugere um método para burlar o impedimento dos beijos na pandemia. Um beijo, oh quem me dera,/Que não pareça ilusão,/Nem sequer sonho ou quimera,/P’ràlegrar o coração./Se não for um verdadeiro/Mas apenas virtual,/Pode ser último ou primeiro/O sentimento é igual./Se não se pode beijar/Por causa da pandemia/Já que é perigoso e faz mal/Mandemos beijos prò ar,Pra que não passe um só dia/Sem beijos, isso era o ideal. (p.288).



Em tempos de covid o poeta não ignora a tragédia que se abateu sobre a sociedade. O poema “Fim de ano I” revela esse momento difícil e os cuidados inerentes que todos temos de enfrentar: Dia 31 dezembro/Dia triste, feio e frio,/Como jamais alguém viu,/É do que, pra já, me lembro./Fim de um ano sem igual,/Todo o Mundo amordaçado,/Todo rosto mascarado,/Mais parecendo Carnaval./Vem já desde o mês de março/Num constante amortalhar./Se com máscara me disfarço,/Prò vírus não me “apanhar”,/Visto andar por aí esparso,/Vou ter de me acautelar. (p.311).



Nesta breve digressão pela poética de Sousa Pereira pode-se constatar a universalidade, a pluralidade e a multiplicidade de imagens que lançam luz sobre fragmentos do cotidiano, da cultura e da sociedade.



É essa, pois, uma poética que evoca o tempo presente pelo fato de lembrar, o passado pelo ato lembrado, e o futuro pela constante atualização do por vir, de modo que o tempo é um fator imanente a tudo. Esse fato ressalta, na poesia de Sousa Pereira, uma consciência do espaço e do ser das coisas, ao assumir paradoxos capazes de plasmar esses e outros mundos tão próximos e tão distantes, que necessitam de muitos futuros para serem descobertos.



A leitura do texto poético permite, nesse sentido, verificar tanto o condicionamento social da obra quanto o vínculo entre a obra e o ambiente, o que evidencia como alguns fatores externos atuam na organização interna, isto é: de como o social oferece a matéria que, em algum nível, manifesta-se na realização estética.



É uma poesia que pretende seduzir o leitor a partir do seu aspecto lúdico e encantatório. Além disso, possibilita uma leitura rápida e imediata, uma das necessidades do leitor médio e contemporâneo.



Podemos inferir que os poetas buscam em outros aqueles elementos que têm algumas sintonias com o seu processo criativo. Assim, a tradição serve tanto como um parâmetro criativo quanto para legitimar novas práticas poéticas. A leitura que o autor realizou dos seus pares – seja pelo viés da desleitura/, tresleitura e contraleitura – o permitiu encontrar a si mesmo e esboçar a sua dicção, fundada seja na negação ou na afirmação dos preceitos que regem o engenho daqueles que leu.



Todo o poeta, todo o artista é artesão de uma linguagem. Mas o artesanato das artes poéticas não nasce de si mesmo, isto é, da relação com uma matéria, como nas artes artesanais. O artesanato das artes poéticas nasce da própria poesia.



As formas de perceber e retratar o espaço revelam, na sua poesia, ideias como a de pertencimento e a maneira de estar no mundo.



Em lógica consequência, só resta explicitar o desejo de compartilhar com os leitores a aventura poética que nos é apresentada neste livro de Sousa Pereira que só lido poderá transmitir a verdadeira dimensão de sua arte. Faço votos de uma muito feliz e não menos proveitosa e prazerosa leitura.



Belo Horizonte, 19/06/2021



 

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