quinta-feira, 9 de setembro de 2021

"Ladainha na horizontal " - David Mourão-Ferreira

 




Ladainha na horizontal 



 

 

Como se fossem jangadas


desmanteladas,


vogam no mar da memória


as camas da minha vida...


Tanta cama! Tanta história!


Tanta cama numa vida!


Grabatos, leitos, divãs,


a tarimba do quartel;


e no frio das manhãs


lívidas camas de hotel...


Ei-las vogando as jangadas


desmanteladas,


todas cobertas de escamas


e do sal do mar da vida...


Tanta cama! Tantas camas!


Tanta cama numa vida!


Já os lençóis amarrados


tocam no centro da Terra


(que o reino dos desesperados


fica no centro da Terra!)


e os cobertores empilhados


são monte que não se alcança!


Só as tábuas das jangadas


desmanteladas


boiam no mar da lembrança


e no remorso da vida...


Homem sou. Já fui criança.


Tanta cama numa vida!


Nem vão ao fundo as de ferro,


nem ao céu as de dossel...


Lembro-vos, camas de ferro


de internato e de bordel,


gaiolas da adolescência,


ginásios do amor venal!


Barras fixas. Imprudência.


Sem rede, o salto mortal


pra fora da adolescência...


E confundem-se as jangadas


desmanteladas


no mar da reminiscência...


Onde estás, ó minha vida?


Sono. Volúpia. Doença.


Tanta cama numa vida!


E recordo-vos, tão vagas,


vós que viestes depois,


ó camas transfiguradas


das furtivas ligações!


Camas dos fins-de-semana,


beliches da beira-mar...


Oh! que arrojadas gincanas


sobre os altos espaldares!


E as camas das noites brancas,


tão brancas!, tão tumulares!


Cigarros. Beijos. Uísque.


Ó fragílimas jangadas,


desmanteladas...!


E nelas há quem se arrisque


sobre os pélagos da vida!


Cigarros. Beijos. Uísque.


Tanta cama numa vida!


E o amor? Tálamo, templo,


conjugação conjugal...


O amor: tálamo, templo


- ilha num mar tropical.


Mas ao redor, insistentes,


bramam as ondas do mar,


do mar da memória ardente,


eternamente a bramar...


Já no frio dos lençóis


há prelúdios da mortalha;


e, nas camas, sugestões


fúnebres, torvas, pesadas...




- Sede, por fim, ó jangadas


desmanteladas,


a ponte do esquecimento


prá outra margem da Vida!


Sede flecha, monumento,


ponte aérea sobre o Tempo,


redentora madrugada!


Se o não fordes, sereis nada,


jangadas


desmanteladas,


todas roídas de escamas


da margem de cá da Vida...


Pobres camas! Tristes camas!


Tanta cama numa vida!





 

David Mourão-Ferreira

 

 



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