quinta-feira, 4 de novembro de 2021

"Do Medo" - Luis Filipe Castro Mendes

 




Do Medo



 

 

 

 

1



Não pode o poema


circunscrever o medo,


dar-lhe o rosto glorioso


de uma fábula


ou crer intensamente na sua aura.


Nós permanecemos, quando


escurece à nossa volta o frio


do esquecimento


e dura o vento e uma nuvem leve


a separar-se das brumas


nos começa a noite.




Não pode o poema


quase nada. A alguns inspira


uma discreta repugnância.


Outras vezes inclinamo-nos, reverentes, ante os epitáfios


ou demoramo-nos a escutar as grandes chuvas


sobre a terra.


Quem reconhece a poesia, esse frio


intermitente, essa


persistência através da corrupção?


Quase sempre a angústia


instaura a luz por dentro das palavras


e lhes rouba os sentidos.


Quase sempre é o medo


que nos conduz à poesia.




2



Voltando ao medo: as asas


prendem mais do que libertam;


os pássaros percorrem necessariamente


os mesmos caminhos no espaço,


sem possibilidades de variação


que não estejam certas com esse mesmo voo


que sempre descrevem.


Voltando ao medo: o poema




desenha uma elipse em redor da tua voz


e cerca-se de angústia


e ervas bravias — nada mais


pode fazer.






Luis Filipe Castro Mendes



 

 

 

 

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