quinta-feira, 14 de março de 2024

"Supermercado" - Manuel de Freitas


 


Supermercado





para a Ana Paula Inácio



Tenho 38 anos e sei finalmente o que


quero. Basta olhar para o cesto


de compras: bolachas Leibniz, papel


higiénico Renova, leite com chocolate


Agros, uma garrafa de Famous Grouse


e pelo menos seis latas de Super Bock.


Discos já tenho que cheguem, por muito


que me desminta, e não viverei o suficiente


para ler todos os livros que me ocuparam a casa.



É um bocadinho banal, eu sei, mas é a minha


prestação diária enquanto consumidor, o meu fado


simples, enxuto, quase isento de lágrimas & remorsos.


Acordo para almoçar no 
Doce Lindo (ou Doce Belo,


ainda 

não houve rotina que me fizesse decorar o nome),


passo pelo supermercado, onde desejo ou nem


por isso



todas as ternas e voláteis isildas deste mundo perfeito


– e volto a subir devagar as escadas de madeira rombas.



Só muitas horas depois, quando as luzes


me garantem que o bairro inteiro dorme,


escrevo poemas como este, versos em que


inutilmente vos digo que sou um homem feliz,


un roseau pensant, o mais belo cadáver de Lisboa.



 

Manuel de Freitas




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