quarta-feira, 15 de março de 2023

"Além-tédio" - Mário de Sá Carneiro

 



Além-tédio





Nada me expira já, nada me vive ---


Nem a tristeza nem as horas belas.


De as não ter e de nunca vir a tê-las,


Fartam-me até as coisas que não tive.




Como eu quisera, enfim de alma esquecida,


Dormir em paz num leito de hospital...


Cansei dentro de mim, cansei a vida


De tanto a divagar em luz irreal.




Outrora imaginei escalar os céus


À força de ambição e nostalgia,


E doente-de-Novo, fui-me Deus


No grande rastro fulvo que me ardia.




Parti. Mas logo regressei à dor,


Pois tudo me ruiu... Tudo era igual:


A quimera, cingida, era real,


A própria maravilha tinha cor!




Ecoando-me em silêncio, a noite escura


Baixou-me assim na queda sem remédio;


Eu próprio me traguei na profundura,


Me sequei todo, endureci de tédio.




E só me resta hoje uma alegria:


É que, de tão iguais e tão vazios,


Os instantes me esvoam dia a dia


Cada vez mais velozes, mais esguios...



 

 

Mário de Sá Carneiro




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