"Canto da cela 10" - Carlos Loures
Canto da cela 10
Este esquife de pedra e de aço em que viajo,
onde navego as horas e as constelações do ódio,
é uma cela imóvel plantada no coração do medo.
Um manto de argamassa e ferro cobre a minha voz.
Não mais a mordaça invisível da falsa liberdade
que ante o Sol floresce impudicamente: agora
a voz abafada por sucessivas grades e paredes,
submersa sob este céu de estuque, sem estrelas;
agora, esta feia gaiola pintada de desespero,
em cujo dorso vai cravada a aranha possessiva
da lâmpada gradeada sempre acesa sobre a porta,
feroz sentinela da noite eterna. E, todavia,
para lá das grades, do corredor, do carcereiro,
a minha face adivinha o hálito fresco da madrugada
e eu navego a madrugada sobre o meu bailique,
sobre este corcel rescendente a suor e a sangue.
Durante as refeições abrem a porta e eu vejo
uma estreita fatia da janela do corredor:
são cinco grades de sé e três de céu
e estes são os melhores momentos do dia.
De pé, como a sopa do estado e olho a catedral –
- tive sorte – fiquei em frente a uma bela
rosácea
(o quotidiano de um preso constrói-se
de factos humildes e pequenos).
Na parede cinzenta tatuaram um camelo sem pernas,
Um perfil de mulher com longos cabelos,
Uma estrela, nomes e riscos, muitos riscos,
sulcos no tempo, dias rasgados a golpes de
solidão
pelos muitos camaradas que já aqui estiveram
e deixaram a sua passagem impressa nas paredes,
no chão, nas mantas e no ar, neste odor,
escandindo angústia e dolorosa expectativa.
Já não olho a parede – conheço-a de cor –
gasto as horas passeando nestas estreitas
tábuas,
quatro metros para lá, quatro metros para cá.
Lá fora
passam eléctricos e os pombos ruflam as asas.
………………………………………………………
À noite a prisão é um corpo pétreo, mas que
pulsa,
As suas velhas empenas vibram sob os nossos
dedos,
levam e trazem palavras fraternas.
Com o amor com que Ísis juntou o corpo de Osíris
disperso ao vento, junto letra a letra
uma mensagem que palpita aos meus ouvidos
- coragem companheiro – coragem companheiro.
Ah Companheiros,
nem a pedra e o aço conseguem esmagar as nossas
vozes,
elas virão um dia como um rio impetuoso e forte
rasgar a noite em que as querem aprisionar,
destruir as grades da tirania, a opressão
e a crueldade – tudo isto derrubarão
na corrida para o seu oceano – a Liberdade.
Carlos Loures
Nota: Em Janeiro de 1965, envolvido na grande vaga
de prisões que afetou estudantes e intelectuais das duas organizações
clandestinas existentes – o Partido Comunista e a Frente de Ação Popular – fui
preso e, antes de ir para a sede da polícia política onde, durante muitos dias,
fui interrogado da forma que se sabe ou imagina, estive uns dias encarcerado na
cela nº 10 do Aljube, num daqueles desumanos cárceres a que se chamava os
«curros», celas estreitas e insalubres onde a luz filtrada através das grades e
atravessando o corredor, era a única coisa agradável que acontecia. Quando,
três meses depois, fui libertado, a recordação daqueles dias num «curro» do
Aljube (que nem foram os piores…), ditou-me este texto que depois publiquei em "A Voz e o Sangue". De notar, e não me canso de insistir neste tópico, que a
Liberdade que invoco não é esta que vivemos – muito feita de «liberdades» – mas
sim aquela que, há mais de 40 anos, eu e muitos sonhávamos alcançar.
Carlos Loures
Para ler o Prefácio da 2ª edição do livro “CULTURA ACÚSTICA E LETRAMENTO EM MOÇAMBIQUE: Em busca de fundamentos antropológicos para uma educação intercultural” do autor do blog clique aqui
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