Portugal - Daniel Oliveira: Não há um ponto neutro entre Mamadou e Ventura
Quando dizemos que vivemos numa sociedade machista não
estamos a dizer que todos os homens são machistas. Nem sequer interessa saber
se a maioria o é (apesar de me parecer óbvio que sim). No entanto, a ninguém
passa pela cabeça dizer, quando se fala de machismo, que também há mulheres que
desprezam os homens. Porque já interiorizámos a ideia de que o machismo é
estrutural e determina que haja menos mulheres em cargos de poder; que haja
mais mulheres na Universidade, mas menos no topo da Academia; que as mulheres
ganhem menos e acumulem funções domésticas com o trabalho; que sejam vítimas
preferenciais violência doméstica. Já assumimos que o machismo não é uma
questão estritamente individual e não se resume a posições pessoais ou
políticas explicitas.
Parece continuar a ser difícil pensar assim em relação
ao racismo. E, no entanto, sem se perceber o que é o “racismo estrutural” todos
os nossos debates sobre racismo em Portugal só podem acabar em equívocos. O
racismo estrutural não resulta de opinião política ou pessoal de cada um sobre
uma etnia, mas do lugar que um grupo racializado ocupa na sociedade. O que leva
a que, em Portugal, e na medida em que esses dados estão disponíveis, os negros
sejam mais pobres, menos escolarizados, menos representados em cargos de poder
e mais facilmente condenados em tribunais e encarcerados. Quando uso o termo
“grupos racializados” não pretendo socorrer-me do jargão correto, que
geralmente evito. Quero reforçar a ideia de que a etnia é, neste caso, uma
condição social. Eu posso passar um ano inteiro sem me lembrar que sou branco.
Dificilmente um negro ou um cigano passa um mês sem se lembrar dessa sua condição.
O racismo estrutural tem uma história. Houve muitas
formas de escravatura. Mas o poder económico, político e cultural da Europa
resultou da construção de impérios coloniais. E, na construção desses impérios
e na acumulação de riqueza a que corresponderam, a escravatura e a
desumanização do africano – indispensável para a sua transformação em
mercadoria – foi central. Nem os EUA seriam o que são hoje sem o impulso da
escravatura, nem a Europa seria o que é hoje sem o colonialismo. Claro que já
abolimos a escravatura há muito e vivemos em tempos pós-coloniais (há não tanto
tempo assim). Mas ignorar esta história é ignorar as razões pelas quais o
racismo é estrutural nas nossas sociedades.
Feito este introito, há paralelos que são um insulto.
Claro que há negros com preconceitos em relação a brancos e brancos que
experimentaram de forma bastante dolorosa esses preconceitos. Não há etnias
feitas de pessoas tolerantes e outras naturalmente intolerantes. Mas a nossa
sociedade não discrimina brancos. A nossa sociedade nem sequer olha para os
brancos como uma categoria. Os outros é que se distinguem e se nomeiam. E, por
razões históricas profundas que se ignorarmos desconhecemos grande parte do
nosso passado, os outros é que são genericamente prejudicados pela sua condição.
E não é apenas por ser serem minorias. As mulheres são a maioria e ganham
menos, trabalham mais e são estão menos representadas no topo das estruturas
políticas, económicas e académicas. Aí estão elas para mostrar que é uma
questão de poder, não de número.
Pelo menos entre progressistas, mesmo os que recusam
alguma deriva identitária, tudo isto são pontos assentes. E é por isso que
fiquei atónito ao ler uma entrevista recente de António Costa. Depois de atirar
a discriminação racial em Portugal para um canto, falando dos elogios das
Nações Unidas pelas nossas práticas de integração dos migrantes e das nossas
atuais leis de nacionalidade – do racismo pessoal passamos para o racismo
formal, ignorando o racismo que realmente tem impacto no quotidiano –, sai-lhe
uma frase destas: “Nem André Ventura nem Mamadou Ba
representam aquilo que é o sentimento da generalidade do país.”
O melhor comentário a esta frase veio, como acontece
com frequência, de António Guerreiro. Chamou a esta frase o “momento Nem-Nem” de António
Costa. De um lado os excessos de Ventura, do outro os excessos de Mamadou,
tratados como meros espelhos um do outro. No meio, “a generalidade do país”,
uma espécie moderada do “português de bem”. Com o qual ele naturalmente se
identifica, longe de todos os radicalismos, sejam brancos ou pretos. Escreve
Guerreiro: “O homem médio em que Costa se revê e que lhe inspira a operação
retórica do Nem-Nem fornece um ponto de apoio para buscar o consenso
conservador, para eliminar qualquer posição crítica radical (e é preciso
acrescentar que radical não é mesmo que extremo, apesar de encontrarmos hoje,
em muitos discursos, essa equivalência), para deixar que o pragmatismo siga o
seu curso, sem obstáculos”.
Quando recuso o paralelo entre Mamadou Ba e André
Ventura não tenho de aderir às posições de Mamadou. A questão já ultrapassa o
radicalismo ou a moderação, apesar de ser evidente que Costa tem horror a
qualquer posição que contrarie o pragmatismo de curto-prazo, que é sempre
conservador. Martin Luther King e Malcom X tinham pontos de vista muito
distantes sobre como combater o racismo e o segregacionismo. Um era pacifista,
outro pelo contrário; um acreditava na integração dos brancos no combate pelos
diretos dos negros, a outro isso parecia, pelo menos em determinada fase do seu
combate político, uma contradição insanável.
Ao longo da sua história, Malcom X disse e escreveu
coisas que hoje acharíamos impensáveis. Não imagino ouvir de Luther King que
não se sentia representado nem por Malcom X, nem pelo governador Wallace, do
Alabama. Nem pelos Panteras Negras, nem pelo Klu Klux Klan. Ambos seriam
violentos? Ambos transmitiriam ressentimento racial? Sim, e, na realidade, nada
disto se aplica a Mamadou Ba. Mas estavam em campos inconfundíveis: o do opressor
e o do oprimido. E quem defendia a causa dos direitos cívicos não era neutral
em relação a estes dois campos. Estava comprometido com uma luta que poderia
levar a discordâncias profundas e a críticas ferozes ao seu campo, nunca à
neutralidade.
Há uns anos, critiquei Joacine Katar Moreira. Isso
valeu-me uma reação que me pareceu excessiva da deputada e a solidariedades que
dispensava. Não me arrependo das críticas que lhe fiz, a que o tempo deu razão.
Não me revejo numa cultura de trincheira que cala a crítica para não dar armas
ao inimigo. Sabemos bem para onde nos leva esse caminho. Acho, por isso, que
muitas declarações públicas de Mamadou Ba estão sujeitas a crítica de qualquer
antirracista, desde que não sejam descontextualizadas (qualquer pessoa em boa-fé
sabe que ele nunca defendeu que se matassem brancos). Num mesmo campo, há
propostas e caminhos mais moderados ou mais radicais, mais conciliadores e mais
extremados. Há posições aceitáveis e inaceitáveis. Não faltou a vários
movimentos feministas, antirracistas e abolicionistas radicalidade nos
propósitos e extremismo na ação. Muitos terão sido criticáveis – alguns
inevitáveis e até indispensáveis – e levaram a divergências e cisões. Mas isso
não se confunde com descomprometimento e neutralidade.
Não há, entre um racista e um antirracista, um lugar
confortável onde estar no meio. Dizer que não há um lugar no meio de Ventura e
Mamadou não é dizer que ou estamos com Mamadou ou estamos com Ventura. É dizer
que essa dicotomia transporta um paralelo inaceitável para qualquer
antirracista. Mamadou pode ter posições que outro antirracista critique de
forma bastante dura. Mas está no campo do antirracismo, o que o torna
incomparável a Ventura. A não ser, claro, que António Costa compre a ideia que
há, em Portugal, dois racismos, um branco e outro negro, que se confrontam.
Quer dizer que ainda nem bateu à porta da natureza estrutural do racismo, coisa
que a sua entrevista denuncia, aliás. E que é comum no debate político
português e revela o ponto que ainda estamos, mesmo à esquerda.
Talvez por ser uma das poucas pessoas de uma minoria
étnica a chegar ao topo do Estado (sempre com insultos racistas nas redes
sociais), Costa parece acreditar que o racismo é uma questão pessoal. Mas não
é. E é por isso que, por mais críticas que faça a Joacine ou a Mamadou, nunca
me passaria pela cabeça aplicar o “nem-nem” de que fala António Guerreiro.
Porque isso me colocaria num ponto neutro que não existe. Ele é apenas uma
forma pouco corajosa de deixar tudo como está.
Fonte: Jornal Expresso, 22/03/2021 Aqui
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