segunda-feira, 5 de outubro de 2020

"Entre dois dias": Miguel Serras Pereira

 





Entre dois dias



 

 

À tua volta agora é tudo azul



 

tudo é azul dentro de mim



 

e dentro de mim é tudo à tua volta



 

 

 

Aqui entras na sala e acendes o cachimbo



 

ou sobes as escadas para o sótão



 

onde ficas silencioso



 

a contemplar o céu e os muros



 

da janela entreaberta do telhado



 

 

Ali ao mesmo tempo estás comigo



 

na encosta da colina sobre o rio



 

e ambos olhamos os barcos e as aves



 

uma brisa talvez mais antiga do que a terra



 

nos rebentos dos salgueiros da outra margem



 

 

As águas passam por ti



 

e tu ficas junto às águas que perpassam



 

Vens sentar-te muito perto dos meus ombros



 

de regresso ao tempo dos gigantes



 

E então acendem-se à distância



 

invisíveis armários suspensos das paredes



 

onde cheiro o verão nos bosques e a erva



 

os cachos de uvas comidos à lareira



 

ou pendurados das traves do teto a descoberto



 

para os primeiros dias de neve do inverno



 

 

Por um momento encontro ainda o teu olhar



 

e atravesso a sua claridade desdobrando-o



 

nos campos onde o feno



 

cresce à altura dos cavalos



 

por entre os quais avança já uma criança



 

para abrir de par em par as portas do castelo



 

 

Tu estás no limiar da torre



 

olhando as estradas



 

que pelo tempo fora nascem de partida



 

Depois afastas-te mostrando-me a passagem



 

e vamos cada um pelo seu lado até amanhã



 

por onde o caminho de novo não tem fim



 

 

Miguel Serras Pereira


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