"Percurso da ausência - V" - Gilberto Nable
Percurso
da ausência - V
Para José Roberto
Ayres
Chove lá fora sobre as serranias de Aiuruoca.
Chove lá fora sobre o gado em aboio.
Chove lá fora sobre os bambuais e o rio.
Chove lá fora sobre antigos caminhos da minha infância,
com arapucas armadas e rolinhas,
e folhas úmidas nos pés descalços,
e lírios já orvalhados.
Chove sobre os pirilampos no escuro
em verde fosforescência.
Chove sobre o corpo de minha mãe doente,
exposto ao tempo e à febre.
Chove dentro do meu peito.
Chove uma chuva miúda e triste.
Chove, afinal, sobre os telhados do mundo.
Chove nos escombros do World Trade Center,
no Marco Zero da Grande América divinizada.
Chove sobre as mulheres iraquianas orando e balindo.
Chove sobre os campos de refugiados no Afeganistão,
em suas barracas esfarrapadas ventando;
assim como antes chovera nos campos de Sabra e Shatila,
e no Gueto de Varsóvia.
Chove na piazza de São Pedro, deserta,
e sobre os ombros encarquilhados do Papa.
Ouço a chuva caindo sobre minaretes e sinagogas
com seu ruído monótono.
Vejo a chuva molhando o corpo dilacerado de um
menino palestino,
com as mãos agarradas a uma pedra.
Chove nos capacetes metálicos dos soldados de Israel,
nas suas viseiras de aço e miras telescópicas.
Chove ainda hoje sobre mim,
bêbado, sozinho e urinando na chuva,
com um miserável soluço na garganta.
Eu sei que chove hoje e choverá para sempre,
em lento e definitivo dilúvio,
sem intervalo, nem instante,
até que tudo esteja submerso sob as águas,
e na superfície nada,
nada respire sobre as ondas.
Gilberto
Nable
0 comentários:
Postar um comentário