sexta-feira, 9 de outubro de 2020

"AntiDeuteronómio I" - Adão Cruz



 



AntiDeuteronómio I


 

 

 

A cidade está deserta por dentro e por fora de nós


 

 

Começa a não haver vivalma neste lusco‑fusco brumoso


 

 

neste irracional azul de um céu de chumbo


 

 

nesta descrença de manhãs de sonho


 

 

em bicéfalas e bárbaras bandeiras de um


 

 

mundo informe e medonho.


 

 

Seguir em frente no deserto do fim do dia


 

 

dilatar a esperança até que raie a claridade


 

 

no ventre da manhã de fogo e sangue


 

 

entrar na vereda enlameada e fria


 

 

dos homens de aço sem perfil e sem destino


 

 

virar na esquina sem luz da esperança perdida


 

 

no contra‑senso divino…


 

 

ou voltar para lugar algum.


 

 

Como seria bom continuar eternamente


 

 

o caminho que nascendo dentro de nós


 

 

em fio de regato cristalino


 

 

se perde ingloriamente à flor da pele.


 

 

Assim que for dia


 

 

se dia chegar a ser nesta aparência de paisagem


 

 

não podemos deixar que a nuvem negra sombria


 

 

e a negra miragem



 

 

 

 

venha toldar a aurora da razão


 

 

e semear ruínas no coração apodrecido das nações


 

 

e no cérebro corrompido por obscenas falas


 

 

armas e cifrões


 

 

de imperiais e acéfalos patrões.


 

 

Se libertarmos da nuvem negra


 

 

a aurora da nossa interrogação


 

 

se impedirmos a negra nuvem


 

 

de apagar a luz da inquietação


 

 

na incontornável unidade do pensamento e da razão


 

 

o poema incendiará as asas do vento


 

 

e queimará as garras dos abutres


 

 

devolvendo à humanidade algum alento.


 

 

A terra engolirá os exércitos genocidas


 

 

que à sombra da nuvem negra


 

 

de deuteronómicos evangelhos


 

 

a ferro e fogo se empanturram de vidas


 

 

e se embebedam de sangue


 

 

para glória do Senhor dos Exércitos…


 

 

e jamais haverá Deuteronómio que resista


 

 

por mais petróleo que na terra exista.


 

 

E jamais a exaltação da santidade


 

 

estará na morte e nas cinzas da cidade


 

 

E não haverá espinhos nos olhos


 

 

e aguilhões nos flancos da vida…


 

 

e não haverá armas de destruição maciça


 

 

no coração das mães dos filhos exterminados.


 

 

Na diáfana manhã de um novo dia


 

 

apenas a plangente harmonia


 

 

de um Stabat Mater


 

 

 

 

 

Adão Cruz


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