Em outubro de 1995, o telefone tocou no Palácio de Buckingham e um comediante
franco-canadense se apresentou a assessores da rainha Elizabeth como o então
premiê do Canadá, Jean Chrétien. O plebiscito sobre a separação de Quebec se
aproximava e o ator Pierre Brassard conseguiu enganar a rainha durante 17
minutos, numa conversa em que ela cometeu pelo menos uma gafe, ao prometer apoio
para manter o Canadá unido. Afinal, a soberana da Comunidade Britânica não podia
tomar partido em disputas eleitorais nas ex-colônias. O clima da conversa foi
tão informal que Brassard perguntou à Rainha se ela já tinha fantasia para o
Halloween. Elizabeth riu e respondeu que era festa para crianças. O palácio
reclamou, o comediante pediu desculpas, canadenses e britânicos se divertiram a
rodo com o incidente.
O trote passado por radialistas em figuras públicas, especialmente na mídia
de língua inglesa, é comum. Em novembro de 2008, dias antes da eleição de Barack
Obama, Sarah Palin, candidata a vice do republicano John McCain, conversou com
um comediante de Montreal certa de que tinha Nicholas Sarkozy na linha. Deu um
show de ignorância e deslumbramento com o poder que, tinha certeza, conquistaria
nas urnas. Disse ao “Nicholas” que achava sua mulher, Carla Bruni, o máximo e
combinou ir caçar com ele, apesar do evidente tom de zombaria do comediante.
Trotes já produziram momentos de hilaridade e embaraço, mas até hoje não se
sabe de um desfecho trágico como o suicídio de Jacintha Saldanha. Ela foi a
enfermeira que, no dia 4 de dezembro, passou a chamada de dois radialistas
australianos para outra enfermeira encarregada de atender Kate, a duquesa de
Cambridge, internada no Hospital King Edward VII, em Londres, com enjoos de
gravidez. Os radialistas se fizeram passar pela rainha Elizabeth e o príncipe
Charles, Saldanha acreditou e a colega que cuidava de Kate aparece numa gravação
dando detalhes sobre o estado da princesa, grávida do herdeiro do trono
britânico.
Sarah Palin saiu do vexame da rádio e da derrota eleitoral para uma lucrativa
carreira na TV. Jacintha Saldanha, arrancada violentamente do anonimato, se
enforcou três dias depois, nas dependências do hospital. Casada e mãe de dois
filhos, ela deixou três cartas para a família, cujo conteúdo não foi revelado. O
hospital e a família de Saldanha não fizeram nada para dispersar a impressão de
que seu suicídio está ligado à humilhação pública que passou por ter servido de
instrumento da violação da privacidade real. Numa era em que se humilhar em
público pela mídia é profissão em horário integral, cortesia da
reality
TV, a ideia de um suicídio motivado pela honra parece pertencer à
literatura do século 19.
A honra é o tema do último livro do filósofo Kwame Anthony Appiah, lançado
recentemente no Brasil. Em
O Código de Honra: Como Ocorrem as Revoluções
Morais(Companhia das Letras), o descendente da nobreza axânti, de Gana, por
parte do pai, e da nobreza britânica por parte da mãe, trata de um assunto que
marcou sua juventude, mas encontrou resistência entre filósofos
contemporâneos.
Appiah é professor de filosofia na Universidade Princeton e construiu uma
reputação de intelectual público ao se debruçar sobre temas como identidade
étnica e sexual. Ele argumenta, em
O Código de Honra, que o progresso
resultante da abolição de práticas odiosas como a escravidão e os chamados
“assassinatos por honra” de mulheres paquistanesas não são necessariamente
obtidos pela vitória da certeza moral e da razão. O livro de Appiah cita outros
casos, como os duelos por honra na Grã-Bretanha ou a amarração de pés femininos
na China, e todos têm em comum o fato de que costumes foram extintos quando
entraram em conflito com a honra numa cultura. A honra de um cidadão, diz ele,
requer respeito coletivo e controle da própria imagem. Vergonha e orgulho são
emoções centrais da honra. Quando a honra corre paralela à moralidade, diz o
filósofo, o bem comum sai ganhando. Appiah conversou com o
Aliás do seu
escritório em Princeton.
Para ler a entrevista de Kwame Anthony Appiah clique
aqui