Documentário “O XADREZ DAS CORES”
O Curta metragem
"O Xadrez das Cores " (2004, 21’), dirigido por Marco Schiavon, narra
a história de uma senhora branca que fica sob a guarda de uma empregada
doméstica negra. A idosa não faz questão nenhuma de disfarçar seu racismo é
utiliza o jogo de xadrez humilhar a empregada, mas é justamente o jogo de
xadrez que fará com que as personagens produzam reflexões que mudarão as suas
vidas.
Cida, a empregada doméstica, é um ser humano extremamente respeitoso e poucas vezes se irritou e fez cara feia. Parecia conformada pelos tantos atos de preconceito e discriminação já sofridos ou ela teria tanta compreensão daquela situação que sabia a hora de “mover o xadrez” da vida real? Se a segunda hipótese for a verdadeira, o que lhe deu essa capacidade? Que tipo de formação Cida teve em sua vida para agir assim?
Que tipo de escola Cida frequentou? Que educação, no sentido de formação, teve na sua família em relação ao negro e à sua condição? Que educação recebeu a senhora idosa, Dona Stela, que a fez tão convictamente racista? O que aquelas crianças, que brincavam tanto com armas, aprendiam na escola? Que futuro e que direitos possivelmente, aquelas crianças terão?
Cida parecia ser uma pessoa com pouca escolaridade pelo fato de ter uma ocupação de empregada doméstica, mas ela se mostra reflexiva, com uma visão crítica e capaz de dominar o jogo de xadrez, apesar das orientações da patroa e lendo, sozinha, o manual.
Inevitavelmente emergiram algumas perguntas e reflexões relacionadas aos direitos humanos. Quero dizer, entretanto, que antes de pensar, eu senti. Antes de refletir me veio um sentimento. Um sentimento de indignação e mesmo de revolta. Acredito que Marco Schiavon, diretor desse filme, possivelmente, quis nos provocar colocando repetidamente cenas em que a senhora idosa branca e racista, cutuca a empregada com a bengala e a humilha julgando-a desonesta, incapaz e lhe atribuindo toda a sorte de suspeitas, adjetivos e qualificações degradantes. Dito isso, podemos levantar algumas reflexões.
A primeira de todas me fez voltar na história e perguntar: que direitos tinham os negros, na época da escravidão quando sofriam todo o tipo de maus tratos e lhes eram colocados toda a sorte de rótulos inclusive os distinguindo radicalmente dos seres humanos de cor de pele branca? (“Não tinham alma, tinham um cérebro inferior”). Embora se trate de um filme de ficção, sabemos que ainda existem pessoas como essa senhora, mesmo que algumas com um grau de intensidade menor. E isso é inadmissível se pensarmos nas mudanças em termos do direito, ocorridas da abolição da escravatura até aos nossos dias. Mas por que isso ainda ocorre? Acredito que ainda vivemos em uma “Casa Grande e Senzala”.
O que será que provocou a morte do filho de Cida? Será que sua morte poderia ter sido evitada? E seu direito à vida? E o direito das crianças brincarem, estudarem e viverem a infância como mereceria ser? E por falar em direito, que direito aquela senhora idosa tinha de tratar a empregada daquela forma? Ela tinha o direito ou tinha o poder?
Aqui, faço um parêntesis para comentar a perspicácia do diretor do filme em usar o jogo de xadrez no centro do enredo. Nos estudos da antropologia, analisa-se entre os aspectos da cultura, os ritos e os jogos como forma de repassar e reforçar os valores de uma sociedade, quando em casa ou na escola as crianças brincam, elas estão não apenas desenvolvendo suas capacidades motoras e cognitivas, mas também incorporando crenças e valores. E isso nem sempre ocorre de maneira explícita, mas sim, de forma, muitas vezes sutil, quase sorrateira. Por isso é muito interessante observar os valores “invisíveis“ do jogo de xadrez, como quando a patroa remarcou sobre a quantidade de “peões” sem valor equivalente às empregadas domésticas. Podemos destacar ainda as peças brancas e as peças pretas.
A partir desse filme, que diálogo pode ser estabelecido entre a educação e os direitos humanos? O que a educação pode fazer para que cenas como essas, não se tornem naturais, para que a relação entre as Stelas e Cidas da vida real seja modificada? O que a educação pode fazer para que crianças como aquelas do filme possam ter direito a uma infância plena, tranquila e segura, material e psicologicamente falando?
Não se pretende propor aqui a educação como “redentora” de todos os males ou um discurso do tipo durkheimiano, seguindo o qual bastaria o acesso à escola para que os indivíduos deixassem de lado seu egoísmo e aprendessem a viver de forma mais cordial em sociedade, como se não existissem desigualdades. Nem tampouco proponho algo romântico, do tipo “vamos todos nos dar as mãos” e tudo será maravilhoso. Podemos também lembrar o que Marx nos ensinou sobre a história do homem como a história da contradição e da luta de classes. Mas hoje a sociologia acrescenta à categoria classe social, outros determinantes entre os quais as crenças, as relações familiares e a etnia, que ajudam a explicar, inclusive, as relações de poder na sociedade. Importa ressaltar que a contradição e o conflito existem. Fazem parte das relações sociais, fazem parte do homem, são intrínsecos à natureza, como nos mostrou Hegel.
Então, eu volto à pergunta: o que a educação pode fazer diante disso? Importa dizer que quem atua em uma faculdade de educação, em um curso de pedagogia, tem como desafio principal atuar nas escolas e eu diria que, prioritariamente, nas escolas da rede pública. Uma outra questão é que existem concepções que se diferenciam e se aproximam mais ou menos da educação escolar como sendo redentora das desigualdades, leia-se equalizadora dos direitos humanos (como as concepções da escola compensatória ou equalizadora) ou como reprodutora das desigualdades (concepção de Bourdieu e Passeron, por exemplo). Mas entre esses extremos encontramos pensadores como Gramsci ou Paulo Freire, ao lado de inúmeros outros, que defendem uma perspectiva que acredita em uma mudança e na transformação das relações de poder vigentes, mas sem ignorar ou subestimar os obstáculos e os interesses contrários a isso.
Particularmente, defendo e concordo com Paulo Freire, quando ele defende que a educação deve ser um instrumento de luta, um instrumento que as classes oprimidas poderão usar para se emanciparem e compreenderem os mecanismos que produzem a realidade em que vivem. Um instrumento que lhes possibilitem serem capazes de transformar essa realidade em algo melhor para a maior parte dos indivíduos.
Faz-se, portanto, necessário pensar que tipo de educação queremos e que práticas podemos desenvolver, para que possamos diminuir o preconceito e a discriminação, possamos garantir o direito, por exemplo, de mais negros ocuparem o lugar de professores universitários no Brasil (uma pesquisa realizada há poucos anos, mostra que estes representam cerca de apenas 1%), e também os direitos de todos aqueles que são cidadãos apenas no papel mas que não vivem com dignidade, enfim para que possamos combater os mecanismos que produzam a existência de futuras Stelas e Cidas, como as do filme que vimos aqui. Sugiro fortemente, que uma dessas práticas seja o cinema (Áurea Regina Guimarães Thomazi).
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Cida, a empregada doméstica, é um ser humano extremamente respeitoso e poucas vezes se irritou e fez cara feia. Parecia conformada pelos tantos atos de preconceito e discriminação já sofridos ou ela teria tanta compreensão daquela situação que sabia a hora de “mover o xadrez” da vida real? Se a segunda hipótese for a verdadeira, o que lhe deu essa capacidade? Que tipo de formação Cida teve em sua vida para agir assim?
Que tipo de escola Cida frequentou? Que educação, no sentido de formação, teve na sua família em relação ao negro e à sua condição? Que educação recebeu a senhora idosa, Dona Stela, que a fez tão convictamente racista? O que aquelas crianças, que brincavam tanto com armas, aprendiam na escola? Que futuro e que direitos possivelmente, aquelas crianças terão?
Cida parecia ser uma pessoa com pouca escolaridade pelo fato de ter uma ocupação de empregada doméstica, mas ela se mostra reflexiva, com uma visão crítica e capaz de dominar o jogo de xadrez, apesar das orientações da patroa e lendo, sozinha, o manual.
Inevitavelmente emergiram algumas perguntas e reflexões relacionadas aos direitos humanos. Quero dizer, entretanto, que antes de pensar, eu senti. Antes de refletir me veio um sentimento. Um sentimento de indignação e mesmo de revolta. Acredito que Marco Schiavon, diretor desse filme, possivelmente, quis nos provocar colocando repetidamente cenas em que a senhora idosa branca e racista, cutuca a empregada com a bengala e a humilha julgando-a desonesta, incapaz e lhe atribuindo toda a sorte de suspeitas, adjetivos e qualificações degradantes. Dito isso, podemos levantar algumas reflexões.
A primeira de todas me fez voltar na história e perguntar: que direitos tinham os negros, na época da escravidão quando sofriam todo o tipo de maus tratos e lhes eram colocados toda a sorte de rótulos inclusive os distinguindo radicalmente dos seres humanos de cor de pele branca? (“Não tinham alma, tinham um cérebro inferior”). Embora se trate de um filme de ficção, sabemos que ainda existem pessoas como essa senhora, mesmo que algumas com um grau de intensidade menor. E isso é inadmissível se pensarmos nas mudanças em termos do direito, ocorridas da abolição da escravatura até aos nossos dias. Mas por que isso ainda ocorre? Acredito que ainda vivemos em uma “Casa Grande e Senzala”.
O que será que provocou a morte do filho de Cida? Será que sua morte poderia ter sido evitada? E seu direito à vida? E o direito das crianças brincarem, estudarem e viverem a infância como mereceria ser? E por falar em direito, que direito aquela senhora idosa tinha de tratar a empregada daquela forma? Ela tinha o direito ou tinha o poder?
Aqui, faço um parêntesis para comentar a perspicácia do diretor do filme em usar o jogo de xadrez no centro do enredo. Nos estudos da antropologia, analisa-se entre os aspectos da cultura, os ritos e os jogos como forma de repassar e reforçar os valores de uma sociedade, quando em casa ou na escola as crianças brincam, elas estão não apenas desenvolvendo suas capacidades motoras e cognitivas, mas também incorporando crenças e valores. E isso nem sempre ocorre de maneira explícita, mas sim, de forma, muitas vezes sutil, quase sorrateira. Por isso é muito interessante observar os valores “invisíveis“ do jogo de xadrez, como quando a patroa remarcou sobre a quantidade de “peões” sem valor equivalente às empregadas domésticas. Podemos destacar ainda as peças brancas e as peças pretas.
A partir desse filme, que diálogo pode ser estabelecido entre a educação e os direitos humanos? O que a educação pode fazer para que cenas como essas, não se tornem naturais, para que a relação entre as Stelas e Cidas da vida real seja modificada? O que a educação pode fazer para que crianças como aquelas do filme possam ter direito a uma infância plena, tranquila e segura, material e psicologicamente falando?
Não se pretende propor aqui a educação como “redentora” de todos os males ou um discurso do tipo durkheimiano, seguindo o qual bastaria o acesso à escola para que os indivíduos deixassem de lado seu egoísmo e aprendessem a viver de forma mais cordial em sociedade, como se não existissem desigualdades. Nem tampouco proponho algo romântico, do tipo “vamos todos nos dar as mãos” e tudo será maravilhoso. Podemos também lembrar o que Marx nos ensinou sobre a história do homem como a história da contradição e da luta de classes. Mas hoje a sociologia acrescenta à categoria classe social, outros determinantes entre os quais as crenças, as relações familiares e a etnia, que ajudam a explicar, inclusive, as relações de poder na sociedade. Importa ressaltar que a contradição e o conflito existem. Fazem parte das relações sociais, fazem parte do homem, são intrínsecos à natureza, como nos mostrou Hegel.
Então, eu volto à pergunta: o que a educação pode fazer diante disso? Importa dizer que quem atua em uma faculdade de educação, em um curso de pedagogia, tem como desafio principal atuar nas escolas e eu diria que, prioritariamente, nas escolas da rede pública. Uma outra questão é que existem concepções que se diferenciam e se aproximam mais ou menos da educação escolar como sendo redentora das desigualdades, leia-se equalizadora dos direitos humanos (como as concepções da escola compensatória ou equalizadora) ou como reprodutora das desigualdades (concepção de Bourdieu e Passeron, por exemplo). Mas entre esses extremos encontramos pensadores como Gramsci ou Paulo Freire, ao lado de inúmeros outros, que defendem uma perspectiva que acredita em uma mudança e na transformação das relações de poder vigentes, mas sem ignorar ou subestimar os obstáculos e os interesses contrários a isso.
Particularmente, defendo e concordo com Paulo Freire, quando ele defende que a educação deve ser um instrumento de luta, um instrumento que as classes oprimidas poderão usar para se emanciparem e compreenderem os mecanismos que produzem a realidade em que vivem. Um instrumento que lhes possibilitem serem capazes de transformar essa realidade em algo melhor para a maior parte dos indivíduos.
Faz-se, portanto, necessário pensar que tipo de educação queremos e que práticas podemos desenvolver, para que possamos diminuir o preconceito e a discriminação, possamos garantir o direito, por exemplo, de mais negros ocuparem o lugar de professores universitários no Brasil (uma pesquisa realizada há poucos anos, mostra que estes representam cerca de apenas 1%), e também os direitos de todos aqueles que são cidadãos apenas no papel mas que não vivem com dignidade, enfim para que possamos combater os mecanismos que produzam a existência de futuras Stelas e Cidas, como as do filme que vimos aqui. Sugiro fortemente, que uma dessas práticas seja o cinema (Áurea Regina Guimarães Thomazi).
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