sábado, 28 de janeiro de 2023

"Essa gente" - Julio Pompeu

 



Essa gente




Quinhentas e setenta crianças mortas.



Nem uma lágrima dessa gente.


Nem lamento.


Nem vergonha.


Nada dessa gente que poderia


ter feito alguma coisa


e escolheu deixar morrer


que é o mesmo que escolher matar.



Essa gente que assedia criança estuprada


para defender a vida do feto,


mas que se cala depois que o feto


nasce preto, pobre ou índio.


Porque ser preto, pobre ou índio


anula a criança.


Faz da criança carniça.


Resto de gente.


Que para essa gente,


não é gente que preste.


Ou que só presta calada,


calejada e dócil.


Perto do trabalho


que é pesado ou sujo demais


para a criança da gente de bem.


E até para a gente de bem.


Mas que cai bem para a criança


que tem a cor que tem,


que vem de onde vem.



E que vai rápido


para onde todo mundo vai


quando vai para longe deste mundo.


Que nunca foi seu,


que nunca deixam ser seu,


onde não pode ter nada seu.


Nem sua terra,


nem remédio,


nem médico,


nem comida,


nem corpo,


nem povo,


nem alma.


Só nada.



E toda gente sabe disso.


Todos sabem o que essa gente


quer daquela gente.


Sabem da dor daquela gente.


E da ambição dessa gente.


E todos agem como quem esquece.


Como quem não vê aquela gente


que essa gente não quer à vista.



E só quando a brutalidade dessa gente


aparece nos corpos sequelados


daquela gente


é que um monte de gente


fica indignada com o que essa gente


faz com aquela gente.


Mas depois esquece,


mesmo sem esquecer.


Age como quem esquece


porque dói lembrar do que viu.


Como dói saber da dor da morte


de crianças por fome, doença e veneno


de garimpo ilegal.



Porque dói ouvir as desculpas esfarrapadas


e as mentiras deslavadas


dessa gente desalmada


que parece burra de tão malvada,


mas que é só perversa e descarada


de um jeito que deixa a gente sem jeito.


Sem achar que esse mundo tem jeito.


Sem esperança de que as coisas se ajeitem.


Então, esquece-se.



Presta-se atenção a outras tristezas.


Menos tristes.


Mais banais.


Mais fáceis de engolir.


Mais fáceis de rir delas


Mais dignas de se esquecer


porque não são tão indignas


quanto as outras tantas indignidades


que essa gente é capaz de fazer.



Ah, essa gente de bem.


Que mata dizendo amém.


Que não vê no outro


quem a Bíblia diz ser seu irmão.


Essa gente que não quer o outro


por perto, e nem vivo.



Essa gente de bem


que não quer o bem da gente.


Só quer o seu,


tomado da vida daquela gente.


Dos corpos daquela gente.


Que só tolera a existência daquela gente


se for escravo.


Mesmo assim, longe.


Bem longe da gente de bem.


Bem longe de ser gente.


Bem longe de ser.



 

 

Julio Pompeu




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