As peles e imagens dos yanomamis: uma visão dilacerante do genocídio
Prezado
procurador do Tribunal Penal Internacional, Karim Khan
Quem
morre de fome no Brasil morre assassinado. Nesta semana, o mundo teve acesso a
algumas imagens desse crime, na forma de corpos desnutridos de membros do povo
yanomami.
Aquelas
almas agonizantes são resultados de um plano para garantir que sua presença não
seja um obstáculo para o avanço do crime organizado, disfarçado de
"civilização".
São
cenas que sintetizam um projeto de destruição, que chamamos nos últimos quatro
anos de "governo". Corpos que, diante da desassistência, fazem uma
antropofagia para garantir energia suficiente para sobreviver. Consomem a si
mesmos até que, sem mais massa para recorrer, se apagam.
Eu
escrevo esta carta ao senhor para fazer um pedido tão simples quanto poderoso:
investigue Jair Bolsonaro e a transformação do estado
brasileiro em uma máquina da morte.
Num
país que alimenta 1 bilhão de pessoas pelo mundo, a fome de uma parcela de sua
própria população é uma arma política. Não uma fatalidade.
Vimos
a morte de crianças, a interrupção precoce de sonhos. Fomos confrontados com o
assassinato de idosos, o verdadeiro incêndio de uma biblioteca, como diria o
provérbio africano.
Sobre
sua mesa estão pelo menos cinco queixas contra o ex-presidente brasileiro por
crimes contra a humanidade e genocídio. Nas próximas semanas, os detalhes dessa
última denúncia desembarcarão em Haia. Não confunda com um eventual livro de
história. São imagens dos contornos intoleráveis do século 21 no Brasil.
Diante
da guerra na Ucrânia e dos crimes pelo mundo, sei da dificuldade em selecionar
qual aberração lidar com prioridade. Gostaria, ainda assim, de apresentar
alguns argumentos sobre o motivo pelo qual investigar Bolsonaro é de interesse
do planeta, e não apenas de cortes nacionais.
Quando
os guardiões da floresta são assassinados pela fome, pelo envenenamento, pelo
vírus, por bala ou por omissão, é uma parcela de todos nós que deixa de
existir. Na Comissão Arns, a percepção é de que "quando uma comunidade
indígena é assassinada, é toda uma matriz humana que se perde".
Imagine
um mundo onde os escandinavos seriam extintos? Uma extinção forçada da
população que fala português?
A
ciência já demonstrou que as áreas mais preservadas do planeta são justamente
aquelas onde os povos indígenas têm uma presença sólida. Portanto, falar no
impacto da morte dessas comunidades internacionais como um elemento existencial
para o resto do planeta não é fazer poesia.
Antes
da guerra no Leste Europeu, as mudanças climáticas geraram um número maior de
refugiados em 2021 que todos os conflitos armados reunidos.
Já
que o mundo capitalista não conta sofrimento em almas e seus operadores não são
coveiros, vamos traduzir em números. Segundo a empresa de resseguros Swiss Re,
o prejuízo com desastres naturais em 2021 atingiu a marca de R$ 2,2 trilhões.
Foi como se a Argentina desaparecesse do PIB mundial em apenas um ano.
Costumo
dizer que até os negacionistas climáticos sabem fazer contas. E, convenhamos,
quem ousaria duvidar das constatações financeiras de uma empresa de seguros da
Suíça, não é mesmo?
Diante
dessa crise humanitária —no sentido mais amplo do termo—, tomo emprestadas
algumas das conclusões da sentença proferida pelo Tribunal Permanente dos
Povos. Segundo eles, os atos de Jair Bolsonaro foram "ataques
sistemáticos, generalizados e intencionais contra os povos indígenas
brasileiros, realizados por meio de uma política de Estado que obedecia a um
planejamento deliberado, reiterado e executado de maneira uniforme por atos e
omissões realizados pelo Presidente da República".
De
acordo com a sentença de seus colegas, tratava-se de um projeto de país que
"inclui apenas parte da população brasileira, buscando exterminar qualquer
tipo de diversidade e pluralidade existentes".
Qual
a mensagem que essa política manda ao mundo? A de que temos um planeta onde nem
todos têm o direito de ter direitos.
Prezado
senhor procurador,
Em
muitos aspectos, o que está em jogo no Brasil é um modelo de planeta e de
sociedade. O que está em disputa é qual conceito de futuro queremos abraçar. Um
porto seguro plural ou apenas para aqueles destinados a fazer parte dos
privilegiados?
Bolsonaro
e seus aliados buscaram construir uma nação sem indígenas, seja por meio do uso
da máquina do estado como ator de repressão, seja pela omissão e assimilação. A
mensagem que, hoje, precisamos dar é de que tal caminho é insustentável e
ameaçador. No Brasil ou em qualquer lugar.
Inconformado
diante da morte de 40 integrantes de sua família e do drama do Holocausto, o
polonês Raphael Lemkin lutou uma batalha solitária e vitoriosa nos corredores
da ONU para convencer delegações de todo o mundo a criar o crime de genocídio,
um marco para a humanidade e para as vítimas.
Agora,
o senhor tem a oportunidade de dar um novo passo na construção da Justiça
internacional.
De
dar, finalmente, uma resposta a milhões de indígenas que foram ignorados por
séculos durante a marcha da "civilização" e reinventar o futuro.
Basta
da ideia de erguer monumentos. Os sobreviventes querem Justiça.
Uma
apuração internacional ainda seria uma forma de reparação moral às vítimas de
500 anos de massacres nas profundezas da América Latina, aos aborígenes
australianos ou aos 38 membros da etnia Dakota que, em 26 de dezembro de 1862,
foram executados em Minnesota por ordem de Lincoln.
O
senhor não pode apagar o horror da história, a hipocrisia de um sistema de
educação que nos mentiu e nem desfazer a cor avermelhada da terra regada a
sangue.
Mas
pode, ao lutar contra a impunidade, ajudar a construir um mundo onde todos
caibam. Onde as fronteiras do conceito de humanidade sejam estendidas para,
finalmente, incluir toda a humanidade.
Por
isso, lhe peço: sem Anistia!
Jamil
Chade
Fonte:
UOL, 28/01/2023
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