segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

"Criança" - José Paulo Pinto Lobo

 




Criança




 

Ouço lá fora a algazarra das crianças


A chuva parou e o sol brilha por entre as esparsas nuvens


Assomo à janela faz frio


Observo as correrias e os guinchos de excitação dos petizes


Brincam à apanhada na larga praceta pedonal


Em redor de um redondel onde pontificam uns arbustos mal podados


E pirâmides clarabóias de vidro para iluminar garagens subterrâneas



 

Veio-me à cabeça uma antiga lengalenga amarelecida pelo tempo


“Brincando na serra enquanto o lobo não vem


qu’é qu’ o lobo ’tá fazer?


Os lobos se passeiam ferozes uivando ao luar


Desafiam amedrontam demarcam território


Não apenas um mas uma alcateia inteira


Que inversamente se alimenta de Rómulo e Remo



 

Recordo as crianças que fomos


Quando olhámos embevecidos para o céu constelado


E estendíamos a mão para tocar nas estrelas


Aquelas luzinhas que brilhavam tão longe


Sonhando viajar no espaço sideral


Jovens trocámos os devaneios ingénuos de infância


Por outros mais terrenos de exaltação e solidariedade mas ainda de ilusão


O tempo correu veloz e os sonhos se tornaram fugazes e inatingíveis


Então descorçoados os guardamos em cerradas gavetas da memória



 

Gargalhadas alegres ecoam pela alameda


Quem sabe se poderei mais tarde adormecer


Fazer o tempo e o espaço se dissolver


Transmutar-me na criança que fui


E simplesmente abrir as gavetas para libertar os sonhos


Deixando-os voar livremente



 

 

 

José Paulo Pinto Lobo



 

 

Cascais, 5 de Novembro 2021






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