"Poema inteiro" - Adão Cruz
Poema inteiro
Foi a noite mais triste a mais negra
noite mais triste do que todas as sombras mais triste do que a noite de Orfeu
mais triste do que a sombra dos coqueiros sem lua mais negra do que o mergulho
do tarrafe nas águas fundas do Cacheu.
O homem honesto vítima de esconso
agravo sozinho na noite sem força sem amor sem atitudes enrolou-se na torrente
de lágrimas e não dormiu as longas horas dessa noite tudo se tinha rasgado o
sol a lua a paisagem os rios os braços e o sonho em tiras de trapos que à toa
foi enfiando nos sacos de lixo sozinho na noite sem que uma espada refulgisse
em suas mãos impondo a fronte e a palavra no renascer do horizonte.
O nevoeiro inesperado entrou pela
frincha da janela e comeu tudo comeu a casa que caiu comeu os olhos que
deixaram de ver comeu as mãos tensas que deixaram de tocar a casa ruiu não
ficou pedra sobre pedra e no fim nem pedras se viam no chão nem terra nem pó
tudo limpo impecavelmente limpo feito em nada num lençol apenas mordido de
pétalas e sedução.
E o nada entrou na alma como nevoeiro
cerrado e o coração deixou de bater preso na argila agarrada às veias apenas um
fio de luz de prata fria incandescente atravessava o sítio onde devia estar a
mente e as ideias gerando um lamento seco como um gemido fremente não há
remédio para o gemido o gemido é a coisa mais só mais terrível mais cortante da
carne viva latido de cão perdido no monte não dorme ante o silêncio de mil
ouvidos moucos e agarra-se ao sangue como crude apenas o dissolve a lama da
noite jorrando fontes de silêncio sobre um corpo sem beijos de bocas atadas e
olhos sem horizonte.
A noite do desespero despenhou-se
sobre a cidade cuspindo nomes falsos fincou as garras nas janelas rasgou em
feridas extensas o corpo nu da solidão queimou a vida em catedrais de cinzas
abriu com estrondo a porta de saída sem porta de entrada a janela era só uma
frincha desmesurada tudo era dentro e tudo era fora sem nada…nada havia pelo
meio só livros a voar sem paredes nem estantes de permeio.
Tudo soava a violino sem cordas num
ritmo de movimento sem cor sobre um tabuleiro sem pedras sem força nem
entreatos numa franca abertura da porta que desce aos infernos chorando a
virtude em forte clamor à beira da morte que sobe no sangue glosando a pobreza
de mil retratos impressos noutra era em letra de amor atirados ao fundo abismo
de uma profunda cratera.
Havia em tempos cobertores ainda que
dobrados em opróbrios jugulares havia um cobertor alheio como lívido veneno
dentro de casa mas não há casa nem cobertor que aqueça por dentro o frio é mais
dentro do que de fora do corpo não há fora nem exterior nem mãos nem cara
apenas dor e um mar de nada gelado sem brilho e sem cor enganando a amargura de
uma fogueira sem calor.
O nevoeiro traiçoeiro penetrou de
mansinho sorrateiro enleou-se no orvalho gelado e num abraço apertado dançaram
os dois até se esfumarem e entrarem pelos olhos cegos e pela respiração já
frouxa prestes a apagar-se no chão sem pedras desenhado no pó que se havia
sumido num tempo esquecido na imobilidade das promessas e no correr das águas
em qualquer sentido.
Gritou o homem sem voz pela mãe que
havia morrido como gritam os filhos pelas mães e as mães pelos filhos vivos que
não ouvem nos momentos de aflição, mas não havia mães nem filhos nem momentos
de aflição eram apenas restos de uma ilusão espalhados pelo chão que não era
chão mas uma angustiante perda de forças para gritar se gritar fosse água no
incêndio da solidão.
O tempo era de morte seria assim a
morte pior não seria se houvesse uma porta de entrada para onde para o nada e
não de saída para onde para a vida se vida houvesse para o frio da rua se rua
houvesse para a fímbria do mar se o mar tivesse fundo onde o silêncio grita e
explode numa girândola de palavras e gestos de outroras perdidos entre nuvens
que choveram relâmpagos entontecidos.
A memória era um vidro estilhaçado
vermelho de sangue quebrado um pedaço de vidro partido que o nada deixou
esquecido entre os dedos sangrantes do homem que caminhava por dentro do
nevoeiro quando homem inteiro nada sendo agora desde que em nada se desfez a
casa e dela tomou conta o nevoeiro.
Ainda havia lágrimas havia restos de
sonhos pedaços de vida espalhados pelo chão que agora estava impecavelmente
limpo depois da entrada do nada e da inundação do nevoeiro como se nada ali
tivesse caído ou fosse lambido pelo orvalho que entrou pela frincha da janela
agora em buracos que davam para a rua esburacada onde a violência silenciada
pelo vinho azedo havia deixado todas as coisas na sombra do barro da terra
apagando milhões de estrelas demasiado cedo.
No ar se ar havia voava um texto de
mil palavras sem língua uma nicotínica melodia de álcool e soníferos na frágil
clareza de um cérebro brumoso se cérebro havia trancado de sofrimento entre a
perda e a morte gargalhando a fraqueza para tentar encher o último momento se
momento era aquele onde cabia a tristeza e o sofrimento de uma aurora escondida
onde os astros quebraram a luz que dá luz à cidade e as pálpebras se
incendiaram com os olhos de fora.
Altas horas da noite por entre
castanheiros podres e montes de estevas sem cheiro precipícios e falésias
suicidas lânguidos cantares da planície seca secaram as lágrimas fugiram as
sombras dos olhos baços do pensamento inteiro e uma luz de prata sensual escorreu
de alto a baixo quase conclusiva persuasiva desejosamente metafísica, mas de
cálculo tão frio que a força das lágrimas quentes avançou no sono precipitado
por entre abismos para as águas do mar.
Do fundo dessa longa noite gritam as
mãos erguidas novos olhos doces de chorar e negar o velho altar do homem
empoleirado grosseiro brutal avarento derradeiro a condição de ser inteiramente
outro com sabor a mel a terra e a resina nem eterno nem intacto nem primeiro
sem medo de caminhar por dentro do nevoeiro sem medo nem angústia de se perder
devorado pelo orvalho de pedra de qualquer noite mais triste que possa tombar
sobre o leito de morte de um homem inteiro.
Adão Cruz
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