quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

"Agosto 1964" - Ferreira Gullar


 





Agosto 1964



Entre lojas de flores e de sapatos, bares,


mercados, butiques,


viajo


num ônibus Estrada de Ferro-Leblon.


Volto do trabalho, a noite em meio,


fatigado de mentiras.



O ônibus sacoleja. Adeus, Rimbaud,


relógio de lilases, concretismo,


neoconcretismo, ficções da juventude, adeus,


que a vida


eu compro à vista aos donos do mundo.


Ao peso dos impostos, o verso sufoca,


a poesia agora responde a inquérito policial-militar.



Digo adeus à ilusão


mas não ao mundo. Mas não à vida,


meu reduto e meu reino.


Do salário injusto,


da punição injusta,


da humilhação, da tortura,


do horror,


retiramos algo e com ele construímos um artefato


um poema


uma bandeira. 




Ferreira Gullar

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