"Em formato de estrela, uma oficina" - Pedro Tierra
Em formato de estrela, uma oficina*
Um lugar, uma oficina,
onde malho no metal
a lâmina de minha voz.
Aqui aprendo na forja
a força de minha força.
Aqui aprendo a reverência diante dos Orixás
e me curvo e beijo o pó,
como ensinaram os avós.
Aqui me atrevo a levantar os olhos
e mirar a cara de quem oprime.
Malungo! Malungo!
Acorrentados no mesmo barco,
somos travessia.
Descalços, pisamos a pedra do cais do Valongo.
Sou Angola: sobrevivi aos Tumbeiros,
ao vasto Mar Tenebroso.
A esse azul implacável, que esconde sob o sal,
os tubarões brancos cevados na carne dos mortos:
no mar, na moenda, no canavial, nas minas.
Escapei de 300 anos: correntes e cambaus.
Arrasto nos tornozelos, conchas, miçangas
e os ossos de meus pais.
Sei porque entre nessa capoeira há 40 anos...
Esse é o meu lugar!
Porque fiz dele meu lugar.
Sem pedir licença!
Com sonho e suor.
Sou Mina, antecipo nos búzios
as armadilhas do destino.
Aqui é minha casa, em desenho de estrela.
Aqui levantei meu terreiro de Santo.
Aqui disponho com reza e dança,
com dor e alegria
e ternura e força,
meus Orixás e meus crucifixos.
SOU POVO DE SANTO.
SOU POVO DE SAMBA.
SOU POVO DE RAP.
SOU POVO DE FUNK.
À noite sou festa!
De dia me movo pro ‘rala’
sob a mira de fuzis.
Escapo da emboscada
para chegar à escola.
E nem sempre escapo...
“Mãe, ele não viu que eu estava de uniforme?”
”Mãe, tenho sede... muita sede!”
Morro no corpo de Marcos Vinícius.
Fez 14 anos. Não fará mais.
Desvio do Caveirão para bater o ponto.
Mas quando termina a semana,
a caminho de um chá de bebê,
80 disparos me alcançam no corpo de Evaldo:
Evaldo era músico. Não será mais.
SOU O POVO DA QUEBRADA.
SOB UM EXÉRCITO DE OCUPAÇÃO.
No espaço vermelho dessa estrela
calibro o timbre de minha voz.
Já não quero falar pela boca dos outros.
Ainda que sejam meus irmãos.
Quero é a fala dos atabaques!
Quero é a fala dos tamborins!
Porque aqui, no espaço dessa estrela,
apartei a marteladas
da pedra muda que fui,
os primeiros vagidos de minha voz.
Quando balbucio palavras ainda vestidas de medo,
ou quando arranco a roupa de medo
e alcanço a entonação do grito, na voz de Clara,
ele me vem como o gemido assombrado de uma cuíca
na solidão da noite.
Na solidão dos séculos.
Aí imprimo no peito em fogo e ternura, um nome.
Muitos nomes. A infinita procissão dos nomes:
Ganga Zumba, Acotirene, Dandara e Zumbi dos
Palmares.
Chica da Silva, Lourenço do Caldeirão,
Francisco José do Nascimento, o Dragão do Mar,
João Cândido, que a Chibata não dobrou,
Patrocínio, Luiz Gama, Rebouças, José Pureza,
Oswaldão...
Até pisar o chão de Vila Euclides
e mergulhar no mar de rostos de todas as cores.
As cores de meus irmãos.
Os sonhos de meus irmãos de fresa ou de torno.
Para ouvir a voz do peão brotar do meu próprio
peito,
temperada de negro e da história desse silêncio
de séculos.
E levantar com sua palavra e nossas mãos
esta oficina de modelar sonhos há quarenta anos.
E então me chamar Benedita, Paim, Josimo
Tavares,
Edson Santos, Lélia Gonzales, Vicentinho,
Avelino Preto, Antônio Pitanga...
Mas poderia me chamar Marielle Franco,
um fantasma que assombra condomínios de luxo,
Agatha Félix despida da capa
e do sonho de mulher maravilha...
Quando falo a língua do povo,
quando vivo a vida do povo,
quando morro a quotidiana morte do povo,
quando meu Povo de Santo me busca
e, na quebrada, me encontra
ao alcance dos olhos e de suas esperanças,
me faço governo, me faço serviço:
Quero é a fala dos atabaques!
Quero a fala dos tamborins!
Porque aqui no espaço dessa estrela,
apartei a marteladas da pedra muda que fui,
os primeiros vagidos de minha voz!
(Esse texto é dedicado a todas e todos os
militantes negros que fazem do Partido dos Trabalhadores a oficina de sua voz
para torna-lo sempre o instrumento indispensável para realizar as esperanças do
nosso povo.)
A Revolução Brasileira será negra ou
não será Revolução!
*Locução para vídeo na Abertura do 7o Congresso do PT
(22/XI/2019)
Pedro Tierra – Poeta, militante do Partido
dos Trabalhadores
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