domingo, 24 de julho de 2022

"Carta de Orfeu a Eurídice - 7" - Nuno Júdice

 




Carta de Orfeu a Eurídice - 7

 

 

 



Iludia-me. A morte, que é o fim


do amor, corria à solta nos temporais


da alma. Eu podia ter uma consciência


da sua presença nalguns intervalos bruscos,


quando os teus passos me faltavam, e


só uma nova respiração, atrás de mim, me


restituía o ânimo da ascensão. Tu,


liberta dessa morte que te prendia os lábios,


dizias-me: não me deixes! Como se fosse


preciso dizê-lo! E não fosses tu a única


razão dessa viagem a que dei o nome


vida, sabendo que a sua única verdade é esse


amor. Porém, os nossos lábios não se


encontravam na certeza do tempo.


O futuro instalou a sua distância naquilo


que é o presente, com a sua duração inscrita


no destino dos que conheceram uma


coincidência de um e outro, o olhar uníssono


dos amantes, o brusco repouso de uma


ânsia de espaço. Aqui, a distância é o que não


separa; o medo da mudança dissipa-se;


e a recordação é o que está depois do que foi


vivido, como se fosse a memória a construir


o dia de amanhã.




Quis arrancar-te, assim, ao destino ― e


libertar-me, eu próprio, da sua sujeição. Quantos


rostos se fixaram no teu, para que em ti


eu visse cada uma das imagens por onde passei,


restituindo-lhes uma respiração humana. Procurei-te


enquanto imaginei que me procuravas ― e


cada passo que dava, na minha descida, afastava


tudo o que eu perdia enquanto descia. Nesse outro


mundo, em que nos reduzimos a nós, afastando


do que somos tudo o que nos opunha,


não dei por que um cansaço de ser me obrigava


ao regresso. Tê-lo-ei feito cedo demais? Por


que me voltei, então, como se soubesse que


as sombras não pedem que as olhemos,


e deixei que te prendessem com a sua


inquietação de fumo?




No entanto, um eco responde-me: estou


aqui. E por trás dele outros ecos se sucedem,


multiplicando os lugares, até ao fim


do caminho. No teu quarto, prendendo o cabelo,


esperas que um incêndio de poço entreabra


a noite, e rompa os muros que o silêncio


ergueu à tua volta. Mas o canto envolve-te: e


despe-te, com a solidão dos seus dedos, até


à nudez do caule.

 

 

 



Nuno Júdice


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