sábado, 12 de fevereiro de 2022

"Eu sei, mas não devia" - Marina Colasanti

 




Eu sei, mas não devia

 

 

 

 



Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.




A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não seja as janelas ao redor.


E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.


E porque não olha para fora logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.


E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma acender mais cedo a luz.


E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.




A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.


A tomar café correndo porque está atrasado.


A ler jornal no ônibus porque não pode perder tempo da viagem.


A comer sanduíche porque não dá pra almoçar.


A sair do trabalho porque já é noite.


A cochilar no ônibus porque está cansado.


A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.




A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra.


E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja número para os mortos.


E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.




A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir.


A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.


A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.




A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita.


E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.


E a ganhar menos do que precisa.


E a fazer filas para pagar.


E a pagar mais do que as coisas valem.


E a saber que cada vez pagará mais.


E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.




A gente se acostuma a andar na rua e a ver cartazes.


A abrir as revistas e a ver anúncios.


A ligar a televisão e a ver comerciais.


A ir ao cinema e engolir publicidade.


A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.




A gente se acostuma à poluição.


As salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.


À luz artificial de ligeiro tremor.


Ao choque que os olhos levam na luz natural.


Às bactérias da água potável.


À contaminação da água do mar.


À lenta morte dos rios.


Se acostuma a não ouvir o passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.




A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer.


Em doses pequenas, tentando não perceber, vai se afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.


Se o cinema está cheio a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.


Se a praia está contaminada a gente só molha os pés e sua no resto do corpo.


Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana.


E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.




A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.


Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.


A gente se acostuma para poupar a vida que aos poucos se gasta e, que gasta, de tanto acostumar, se perde de si mesma.



 

 

 

 

Marina Colasanti



 

 

 

 

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