José de Sousa Miguel Lopes - Carta aberta aos professores e alunos: a obrigação ética de dizer "não" às guerras
Há cerca de duas décadas (2004)
escrevi um texto que postei no blog em 2016 (ver aqui). Constatei que o site que publicou meu texto não
está mais acessível. O texto não perdeu atualidade. Assim retomo-o e o
disponibilizo agora.
A
guerra é o ato mais sangrento passível de acontecer, por subordinar ao
terrorismo dos que têm mais força, os inocentes que vão ao altar do sacrifício,
os seres humanos não possuidores de outros bens além dos seus próprios corpos,
memória, ideais, família, princípios e objetivos de vida.
A
guerra movida contra o Iraque acabou, afirmou George W. Bush um mês depois da
invasão das tropas americanas aquele país. Como todos sabemos, a guerra não só
não acabou , como parece ter tendência a se prolongar por muito tempo. Mas já
outras guerras se desenham no horizonte. Qual a próxima? Irã? Coréia do Norte?
Síria? Países distantes, não? E amanhã, que poderá acontecer, quando existe um
consenso dos analistas, de que as guerras do século XXI, serão guerras pela
água? Quando se pensa nos países com grandes recursos hídricos, de imediato nos
inquietamos como a enorme possibilidade de se tornarem vítimas potenciais dos
interesses dos poderosos. Sendo o Brasil, o país do mundo com maiores reservas
deste precioso líquido, não deixa de ser perturbador imaginar o que está por
vir.
Não
podemos deixar de afirmar que estes problemas dizem respeito, não a este ou
aquele país em particular, mas a toda a humanidade. Como educadores ou futuros
educadores, que papel nos cabe?
A
educação é demasiado importante em nossa vida e na vida dos povos que não nos
podemos tornar indiferentes à paz e á guerra.
Entre
a paz e a guerra existe um abismo. Sabem-no os povos por experiência própria e
alheia. Por intuição, todos sabemos que não existem razões que o desmintam,
assumindo inclusivamente que praticamente todas as sociedades humanas
transitaram com facilidade entre uma e outra: da paz à guerra e desta àquela.
Ás vezes, parecia que “juntas” ou em oposição, exigindo ou justificando a luta
como condição prévia para o estabelecimento de qualquer trégua, o combate como
uma forma de procurar a concórdia, o ataque como uma estratégia que torne boa a
defesa, a ameaça da guerra como garantia de uma paz duradoura...E, sem dúvida,
o abismo existe. Existe sempre.
Na
realidade trata-se de um abismo que adota as formas de um precipício que nos
coloca ante um vazio ético e moral sem retorno, da qual se faz parte e á qual
se chega por diversos caminhos. Também através da educação. E, sem dúvida,
também por sua carência ou pelas desiguais oportunidades que oferece a quem
está de um ou de outro lado das fronteiras: na riqueza ou na pobreza, no Norte
ou no Sul, na liberdade ou na opressão, dentro ou fora...
Sem
educação, o abismo que existe entre a paz e a guerra se amplia, revelando os
persistentes triunfos da barbárie, perpetuando a sedução da indolência e da
ignorância com todas as suas misérias, aumentando a injustiça e a exclusão,
marginalizando homens e mulheres no seu direito a construir um futuro que lhes
permita serem melhores, negando a convivência ou limitando-a até extremos que
conduzem ao desespero e á humilhação.
Ainda
que nos custe aceitá-lo, temos evidências de que por via da educação se
legitimaram e exaltaram as vantagens da guerra, enfatizando sua contribuição
para o avanço da ciência, da tecnologia e, incrivelmente, até da democracia.
Mesmo
assim, em nome da educação e a partir dela, se justificam muitos dos discursos
que optaram por “vencer” recorrendo à força antes que por “convencer” fazendo
uso da razão. Recordemos, não sem constrangimento, a ânsia belicista que
animaram e animam as crenças pedagógicas que sustentam seu discurso – e o que é
ainda pior, suas práticas – através do dogmatismo, da xenofobia, do
fundamentalismo, do imperialismo ou do radicalismo em qualquer de suas
manifestações.
Que
podemos pensar, sentir e fazer nós os professores para continuarmos pensando na
paz, na educação para a paz? Que postura devemos adotar perante a guerra?
Tomemos como base para nossas reflexões a recente guerra movida pelos EUA
contra o Iraque.
Em
primeiro lugar, creio que não podemos permanecer impassíveis e indiferentes
ante tanta imoralidade, ante tanto despropósito, ante tanta mentira. Quem
afirma que não quer envolver-se em política está adotando, de forma patente,
uma postura política, que é a de manter-se á margem. É uma obrigação cidadã
assumir uma postura, e uma exigência da ética civil ficar ao lado não daqueles
que fazem a história, mas daqueles que a sofrem. Está claro que, a meu ver,
existem vítimas indiscutíveis neste conflito: os habitantes de Iraque, as
crianças inocentes que vejo jogar futebol nas ruas, as meninas que vemos correr
nas praças, as mulheres e os homens que improvisam refúgios para se
protegerem... Enquanto tantos abandonam o país os inspetores, os diplomatas, os
turistas... “Deixemo-los a eles, os pobres, os miseráveis, a quem vamos
destruir”, veem-nos dizer os poderosos.
Em
segundo lugar, creio que é imprescindível analisar a situação com rigor.
Compreender que o conceito de guerra preventiva é uma perversão do direito. Há
dias explicava isto aos meus alunos: Imaginemos que um professor chega à aula e
diz aos alunos que coloquem as mãos sobre a carteira, imaginemos que com um
machado eu comece cortando vossos dedos, imaginemos que a justificação que
apresento para este ato é o de prevenir a cola na prova... Que injustiça, que
falta de lógica. Pois bem, o castigo da guerra preventiva é a morte para muitos
inocentes. É necessário ter em conta que o unilateralismo quebra a ordem
internacional. Cada país poderá declarar guerra quando o considere justo e
necessário. No será necessária nenhuma concordância da ONU, nem exigência de
provas, nem apresentação de evidências. Pudemos observar como o avanço dos
inspetores se contrapõem às ameaças, à presença de tropas e à exigência de
prazos impostos. Não se podem ignorar que existem interesses econômicos (venda
de armas, negócios com o petróleo, benefícios decorrentes da reconstrução...),
interesses geoestratégicos (domínio da região, imposição do poder...),
eurização frente à hegemonía do dólar... Por outro lado, dizer que quem se opôs
à guerra foram os defensores de Sadam Hussein, não foi mais que uma mentira.
Dizer que quem se opôs ao conflito estava alimentando o terrorismo
internacional não é mais que uma falácia. Não existiram provas evidentes das
tão propaladas conexões do Iraque com a Al Qaeda.
Em
terceiro lugar, é indispensável reconhecer que se abandonou a via da negociação
e do diálogo exigida pelos inspetores e aconselhada pela maioria de membros do
Conselho de Segurança. Quebraram-se os prazos numa inadmissível urgência para
iniciar os bombardeamentos. A diplomacia fracassou porque havia interesse em
desencadear um conflito armado que mostrasse claramente ao mundo quem é que
manda.
Em
quarto lugar, há que deixar bem claro que qualquer guerra não só converte em
vítimas aqueles a quem mata, fere ou empobrece. São vítimas da guerra os
agressores porque se aviltam, se enchem de ignomínia e de brutalidade. E também
são vítimas as testemunhas que aprendem terror, violência e mentira. As guerras
são sempre declaradas pelos poderosos e as sofrem os débeis. Se um país perda a
guerra, a ganham os ricos. Se um país ganha a guerra a perdem seus pobres.
Queridos
professores e alunos, creio que ante o horror dos recentes bombardeamentos não
podemos permanecer impassíveis. Há que gritar não à guerra, a todas as guerras,
não em nosso nome, não com nosso silêncio. É preciso tomar posição pela paz.
Não podemos virar as costas ao conflito. Não devemos ignorar as razões que
levaram à destruição de tantos inocentes. Que fazer? Debater os problemas da
paz entre os professores. A ética “na” e “da” profissão docente deve tomar
partido. Debater este assunto nas aulas, convidar os alunos a se expressarem,
organizar ações informativas, manifestar publicamente nossa postura contra a
guerra... As instituições educativas não podem permanecer á margem do
sofrimento do mundo.
Esta
situação me faz refletir sobre o sentido profundo da democracia. Como é
possível que quem governe nos tenha conduzido a uma guerra, quando milhões de
cidadãos gritaram milhares de vezes que não a queriam? A quem representam os
governantes? Em nome de quem decidem? É preciso reinventar a democracia,
reconstruí-la, aprofundar seu sentido moral. A maioria dos votos, ainda que
seja absoluta, não legitima eticamente a tomada de qualquer decisão. Se assim
fosse, estar-se-ia matando em nosso nome, em nome dos cidadãos e cidadãs que só
querem a paz.
Defendemos
uma educação que reivindique a paz. Assim como nos agradam os esforços que
estimulam o poder do diálogo e da negociação, o valor da razão face á razão do
“valor”, os benefícios da mediação e do pacto em contraste com os desvios que
se apoiam na imposição e na destruição. Uma educação que não oculte o conflito
nem as divisões que ocorrem nas sociedades modernas, que não encubra os maus
tratos (a crianças, mulheres, negros, velhos, refugiados, imigrantes, etc.), a
violência, a agressão, os desequilíbrios, as vítimas de cada uma das guerras já
travadas e por travar...
Uma
educação, contudo, com uma visão positiva. Ou, dito de outro modo, a favor de
processos que estimulem a construção de uma sociedade que desvele, enfrente e
resolva os conflitos pacificamente, provocando mudanças estruturais de modo
não-violento, fomentando valores e atitudes que fortaleçam a cooperação e a
convivência numa sociedade cada vez mais globalizada. Uma educação “em” paz e
“para a” paz, disposta a denunciar a impugnar os riscos inerentes à contínua
presença da guerra no mundo, agravada pela perversidade de suas estratégias e a
intensidade destrutiva que armazenam os arsenais atômicos, químicos,
biológicos...de que dispõem numerosos países. O “não à guerra” – que gritaram
todos os povos do mundo perante o recente ataque ao Iraque – expressa-se na
rebeldia individual e coletiva que combate e condena a falta de razão de um
destino que conduz á morte, á dor, ao sofrimento, ao fracasso ecológico e humano.
É
um “não” ético e, por isso, pedagógico. Um “não” que deve ensinar-se como
direito e responsabilidade, como sentimento e atitude ante o que é sempre
possível e desejável deter na mente dos homens, nas decisões dos governos. A
guerra, dizia Cooper-Prichard no final do século XVI é o “inverno da
civilização”. Hoje mais do que nunca, quando nos assaltam as incertezas,
necessitamos da luz da primavera.
1 comentários:
Obrigada por partilhar, Miguel!
Como você afirma, o texto não perdeu sua atualidade. É triste afirmar isso, não por causa do caráter clássico das ideias, mas porque ainda não conseguimos superar os problemas que você aponta e que estamos vivendo no contexto mundial atual.
É importante o destaque ao significado da educação e ao papel de professores e estudantes na discussão sobre os acontecimentos. E na reflexão sobre o compromisso ético que precisamos assumir neste momento.
Grande abraço!
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