terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

"Só de sacanagem" - Elisa Lucinda


 




Só de sacanagem

 



Meu coração está aos pulos.


Quantas vezes minha esperança


será posta à prova?


Por quantas provas terá ela que passar?


Tudo isso que está aí no ar:


malas, cuecas que voam


entupidas de dinheiro,


do meu dinheiro, do nosso dinheiro,


que reservamos duramente para educar


os meninos mais pobres que nós, pra cuidar


gratuitamente da saúde deles


e dos seus pais.


Esse dinheiro viaja


na bagagem da impunidade


e eu não posso mais.


Quantas vezes meu amigo, meu rapaz,


minha confiança vai ser posta à prova?


Quantas vezes minha esperança


vai esperar no cais?


É certo que tempos difíceis


existem pra aperfeiçoar o aprendiz.


Mas não é certo que a mentira


dos maus brasileiros


venha quebrar no nosso nariz.


Meu coração está no escuro,


a luz é simples,


regada ao conselho simples


de meu pai, minha mãe, minha avó


e os justos que os precederam:


”Não roubarás,


devolva o lápis do coleguinha,


esse apontador não é seu, minha filha”.


Ao invés disso,


tanta coisa nojenta e torpe


tenho tido que escutar.


Até habeas corpus preventivo


Coisa da qual nunca tinha ouvido falar


E sobre a qual minha pobre lógica ainda insiste


Esse é o tipo de benefício que só ao culpado interessará.


Pois bem, se mexeram comigo,


com a velha e fiel fé do meu povo sofrido,


então agora eu vou sacanear:


mais honesta ainda eu vou ficar.


Só de sacanagem.


Dirão: deixa de ser boba. Desde Cabral


que aqui todo mundo rouba.


Eu vou dizer: não importa.


Será esse o meu carnaval.


Vou confiar mais e outra vez.


Eu, meu irmão, meu filho


e meus amigos vamos pagar limpo


a quem a gente deve


e receber limpo do nosso freguês.


Com o tempo a gente consegue


ser livre, ético e o escambau.


Dirão: é inútil, todo mundo aqui é corrupto,


desde o primeiro homem


que veio de Portugal.


E eu direi: não admito.


Minha esperança é imortal.


E eu repito: ouviram? Imortal.


Sei que não dá pra mudar o começo.


Mas, se a gente quiser,


vai dar pra mudar o final.




 

Elisa Lucinda


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