Revista USP, n. 125 (2020): Dossiê Saramago
Há uma cena logo
no início do filme A chegada (2016), na qual a personagem central, uma
linguista, propõe uma aula sobre a história da língua portuguesa. Quando está
dizendo para a sala, mais ou menos vazia, que o português surge num tempo em
que a língua era vista como uma expressão de arte, ela é interrompida pelos
inúmeros celulares que começam a tocar incessantemente, cujo suspense dará
espaço para o desenrolar da trama de ficção científica do longa de Denis
Villeneuve. Pois bem. O fato é que, não obstante a irrelevância do conteúdo da aula
para o desenvolvimento da ação narrativa do filme, alguns de nós ficamos
curiosos por saber aonde a protagonista, interpretada pela atriz Amy Adams,
iria chegar (sem nenhuma ironia ao título do filme) com aquele comentário. Mas,
pensando bem, não é tão difícil assim. Decerto falaria da idade de ouro
renascentista, citaria Camões, Gil Vicente, lembraria o aluvião inventivo do
Barroco, com Vieira, quem sabe Rodrigues Lobo ou Gregório, passaria por
Herculano, Garrett, Alencar, Camilo, Machado, Eça, Rosa... e, seguindo esse
percurso, ou veredas, inevitavelmente chegaria a José Saramago. Saramago soube
como ninguém enxergar a língua, essa nossa língua portuguesa, como expressão de
arte. Uma arte para a qual, aludiu certa vez, pressupõe-se a metáfora da
crisálida, sendo a transformação sua força motriz e mecanismo de sobrevivência.
“Não se inventam, pois, as línguas, mas talvez possam, e devam, ser
reinventadas”, era no que acreditava esse ateu convicto e que foi, sobretudo,
um mestre do ofício de escrever; ou, como preferia, um prático, a quem foi
“vedado penetrar em arcanos teóricos”. Do exercício desvelado dessa prática é
que surgiram – para nossa sorte! – 18 romances e outros tantos contos e peças e
crônicas e poemas e memórias. Dez anos após sua morte, suas histórias – e a
forma como soube contá-las – continuam a nos maravilhar e a suscitar leituras
as mais diversas e instigantes. O dossiê deste número da Revista USP,
organizado por Jean Pierre Chauvin, da ECA/USP, e inteiramente dedicado à sua
obra, é prova disso.
Jurandir
Renovato
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