"Os trabalhadores do fosso cavam a terra..." - João Mostazo
Os trabalhadores do
fosso cavam a terra...
I.
Os trabalhadores do
fosso cavam a terra, abrem o nada na terra.
Os ossos dos
trabalhadores do fosso, pontiagudos, rasgam
a pele dos
trabalhadores do fosso.
Os músculos dos
trabalhadores do fosso acumulam
a massa que tiram da
terra, e crescem;
os trabalhadores do
fosso estocam na carne
o vazio que tiram da
terra.
Os trabalhadores do
fosso não comem, não param, e se pensam
o que pensam é só
deles.
Os olhos dos
trabalhadores do fosso se iluminam:
é noite e a escuridão
constrange.
Os olhos dos
trabalhadores do fosso à noite são lanternas brancas.
A terra afunda em si
mesma.
Lá embaixo, no fundo,
perto do inferno,
os trabalhadores do
fosso trocam sua força
pelo nada que abrem na
terra,
e pagam com esse
trocado a entrada
indesejada na próxima
terra.
Amanhã um monumento
vai ser erguido aqui — pedras brancas, bronze, multidão,
em homenagem aos
trabalhadores do fosso
que fizeram esta obra
impossível.
II.
Os mortos caminham da
esquerda para a direita;
os mortos, a caravana
dos mortos,
as carroças cheias de
doentes dos mortos e as caveiras deles, empoeiradas,
caminham, se arrastam,
vencem a terra,
da esquerda para a
direita.
Os soldados carregam
os feridos, correm, tropeçam, levantam,
carregam os feridos da
esquerda para a direita;
os helicópteros pousam
com os novos combatentes e eles vêm da esquerda para a direita.
Os mortos que eu não
fui, que eu não sou, que eu não posso ser, passam da esquerda para
a direita,
e a humanidade passa a
galope na avenida
seguindo os seus
tambores e arrastando os seus corpos vivos na avenida.
A humanidade passa no
planeta e na avenida.
Só sei dos mortos que
não voltam, que tocaram a matéria viva
que eu não toquei, e
acenderam tochas, e passaram da esquerda
para a direita.
Grandes coisas.
A humanidade passa,
dura, resta.
Ferrugem no aço da
civilização.
João Mostazo
1 comentários:
incrível!
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