"Diálogos e solilóquios" - Fernando Rios & José de Sousa Miguel Lopes
A HORA É DE (PA)LAVRAR
DE NÓS, SUJEITOS E SEUS
PREDICADOS
JUNTARMOS BOAS LETRAS/SEMENTES
E SEMEARMOS E ADUBARMOS
E COLHERMOS
JUNTOS
DE CORPOS E ALMAS
A
PALAVERBO AMAR
segundo diálogo de fernando
rios
com josé de sousa miguel
lopes[i]
I / FR
de repente, o homo sapiens inventou a palavra
e, entre choros e risos, parou de grunhir
ninguém sabe quando e como
mas sua vida mudou
ficamos mais humanos?
passamos a compreender melhor o
outro?
passamos a amar mais?
passamos a odiar mais?
quanto de poder entrou na
palavra?
a palavra ama, canta e dança
a palavra odeia, tortura e mata
que estranha e reveladora
palavra tão hominídea
que tanto embrulha para
presente
quanto enrola em mortalha
que ambígua sapiente idade
nos seus milhões de anos de
vida
e nos seus milhares de anos
palavrando
palavrando o quê, para quê,
para quem?
para nós? quem somos palavrosamente
nós?
II / JSML
vivemos em um mundo ruidoso
de muitas palavras
de muito diz que diz
somos internautas, twiteiros.
temos celulares sempre à mão,
em qualquer tempo e espaço
queremos que nos leiam, nos
ouçam,
porém, sabemos pouco de parar e
ouvir.
III / FR
há quem fala e quem não fala?
quem vale mais? quem pode mais?
e quem responde à pergunta de
gayatri chakravorty spivak:
“pode o subalterno falar?”
quem é o subalterno? ele tem
palavra?
e quando ele fala, quem ouve?
onde é guardada a palavra de
quem não fala?
quanto de câncer explode na
garganta que engole a palavra?
quando a palavra se transforma
em afeto?
quando a palavra se transforma
em cutelo?
quanto pode uma palavra?
nua ou vestida, a palavra afaga
e acaricia
vestida ou nua, a palavra
intimida e açoita
o que fazemos com a palavra?
ela dorme serenamente no
dicionário
mas quando acorda, quando a
acordamos
se transforma... em quê?
IV / JSML
quantas vezes impedimos o
diálogo?
na ânsia de falar, não
escutamos.
temos muitas desculpas para não
ouvir o outro
e temos sempre imensa vontade
de falar
o falar domina? o falar
aniquila?
queremos ser ouvidos, mas não
queremos ouvir.
escutar, ouvir... é muito mais
difícil.
para ouvir, temos que ficar em
silêncio,
temos que prestar atenção,
temos que esquecer nossos
pensamentos
e deixar que a ideia e a voz do
outro,
que nos fala, que nos chega
que entra em mim, que entra em
nós.
precisamos calar
e temos que reconhecer que o
outro existe
e que tem algo para nos dizer.
e ouvindo de verdade o outro
podemos pensar trocar ideias
ganhar ideias trocar palavras
ganhar palavras aprender
e
criar novas realidades
juntos
V / FR
onde está a palavra? numa
página ao léu?
no tempo, no espaço, na
memória?
no céu da boca, na boca
inteira?
em que cérebro mausoléu?
em que corpo exposto ao público?
que palavra enche a boca, mas
esvazia o coração?
que palavra conta história, mas
enterra o passado?
que palavra escorre dos olhos?
que palavra afaga? que palavra
afoga?
alguma palavra enche o
estômago?
e as palavras sobre as peles
protegem do frio, aliviam o
calor?
que palavras falam e calam
em silenciosos estardalhaços?
VI / JSML
o silêncio não é a negação da
palavra,
como a palavra não é tampouco a
negação do silêncio.
há silêncios eloquentes,
palavrosos
como há palavras vãs, vazias
o rumor de nossas palavras só
tem sentido
porque nelas se reflete o mundo
infinito
que está para lá de sua
sonoridade:
o mundo dos sentimentos, das
ideias,
das grandes realidades.
silêncio e
palavra:
dois
instrumentos que se completam.
existe um
silêncio expressivo
e uma
intensa palavra silenciosa,
há um
silêncio que fala, capaz de dizer tudo e qualquer coisa
e uma
palavra oca, que diz nada
o silêncio é também o lugar de
sentidos
que se fazem fora da
representação da palavra,
sentidos que estão no
imaginário humano,
nas tramas do que o sujeito
aprende
e transforma em fantasia, em imaginação.
estamos perante uma cartografia
de afetos,
perante acenos esplendorosos à
poesia,
à amorosidade, à vida
juntos
VII / FR
que palavras emitem os sarados corpos
outdoors?
que palavras estancam as veias
abertas nos campos de batalha?
que palavras cavalgam utopias?
que palavras trafegam pelos
bueiros?
que palavras promovem euforias?
que palavras carregam
alforrias?
somos ilhas cercadas de
palavras por todos os lados
em que vasto oceano nos metemos
nós de palavrosa mente?
e muitas vezes
numa violência
analfomegabetista
emudecemos o
outro
e se não
ouvimos sua palavra
no mínimo
precisamos começar
a ouvir seu agoniado silêncio
porque quando
sua voz explodir
pode nos
emudecer
VIII / FR
as palavras falam e querem
dizer
toda palavra pode ser grandiosa
solidária, fraterna,
palavra/comunhão
(pense na palavra que você
quer falar
ela diz o que você quer
dizer?
ela esmaga o outro
ou faz dele um belo
renascer?)
pobre ser humano rico ser
humano
quantas palavras para
tantos corpos
quais quantos podem ser
palavrados?
entre a palavra branco e a
palavra negro
cabem quantas palavras/peles
coloridas
sem deixar feridas?
entre macho e fêmea
cabem quantas palavras/gêneros
de infinitas amorosas
moradias?
IX / FR
ser humano é masculino humanidade
é feminina
juntos, ser humano e
humanidade
engravidaram-se arcoiristicamente
de mulheres homens lésbicas
gays bissexuais transsexuais
travestis queers questionandos
intersexos curiosos
assexuais pansexuais polissexuais
aliados two-spirits kink
demissexuais
e tantos quantos mais sexos
e tantos
quantos mais gêneros enfim
LGBTQQICAPF2K+ e
mais e mais e mais
seres
humanos humanitários humanitárias
com suas
todas palavras
ávidas
aves águias beija-flores
X / FR
a palavra
é conteúdo e continente
a palavra
pode aquecer sem queimar
a palavra
pode abraçar
a palavra
pode quase tudo
para o
bem e para o mal
então,
por que e quando ela se transforma em punhal?
XI / JSML
palavra escrita, falada,
dançada, repetida, insistente, coerente, carinhosa, poética, criativa, de
ânimo, de consolo, do outro, palavra minha, partilhada, ouvida, de mãe,
de filho, de acalanto
XII / FR
palavra é
tanto e tudo
que
poderia remeter sempre ao convívio
e não ao
martírio
e tanto e
tudo
que
poderia remeter à alegria
à euforia
e não à
tristeza, à melancolia
e tanto e
tudo
que
poderia remeter à vida
e não à
triste sina
quando
teremos esta sorte:
palavra
vida
mais
forte que a palavra morte?
XIII / JSML
palavra que move sonhos
que se levanta contra a
injustiça
que carrega teorias
que ilumina a prática
que arrasta multidões
que cura a ferida
que enxuga as lágrimas
palavra que conta histórias
palavra na vida
palavra
vida
XIV / FR
este
tempo e espaço de ser humano
precisa viver
o outro viver no outro
este
tempo de humanidade precisa agregar o outro
incluir e
agregar o outro do outro onde estou
o que sou
eu senão o outro do outro do outro do outro
que somos
todos nós e outros?
e então, de
mãos dadas, de corpos dados
celebrar
a palavra vida e cantar uma ciranda
num
cordão mundial
seres
humanos e humanidades
unam-se
abracem-se amem-se cantem-se
vivam-se,
vivamo-nos cada segundo
intensamente
juntos
há que tentarmos
a boa palavra quer e precisa falar e
dizer
1 Os textos de José de Sousa
Miguel Lopes foram extraídos do posfácio
que ele escreveu para o livro:
CARTAS GRAVADAS. Celebração da voz na formação docente
ROSELETE FAGUNDES DE AVIZ / ROSILENE KOSCIANSKI DA SILVEIRA.
Editora Appris, Curitiba, 2022
“Este livro é uma síntese teórico-poética sobre a
autoria narrativa na formação inicial de professores, viagem de formação, que
tem sido desenvolvida na Universidade Federal de Santa Catarina. É fruto das
interlocuções com professores e estudantes, mas também escritores, leitores,
contadores de histórias, cineastas”
Leia a íntegra do Posfácio aqui
Leia o primeiro diálogo nestes endereços:
NAVEGAÇÕES NAS FRONTEIRAS DO PENSAMENTO
fernando rios é jornalista, poeta e artista plástico.
José de Sousa Miguel Lopes é professor e pedagogo.
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