quinta-feira, 10 de novembro de 2022

"Poema para afastar o ódio" - Fernando Rios


 


Poema para afastar o ódio



 

 

 


Manifesto contra a letra-munição e a palavra-arma que fazem do dia-a-dia terreno de batalha para almas baldias




 

Para Sofia, naquele tempo, neta de dezesseis meses que já se comunicava por beijos e carinhos. Hoje com oito anos, cheios de carinhos e beijos que assim seja sempre.




 

 

 

1.


que palavra é essa


que fere além da boca


que morde, estraçalha


e sem qualquer ciência


transforma em tralha


toda possível consciência



que palavra é essa


assim mal dita


que seria benfazeja


(se fosse bem dita)


como a mesma mão


que se muda de tapa e soco


para carinho suave emoção



que palavra é essa


que grita, atemoriza


aterroriza


e faz do diálogo


um monólogo narcisista


de uma gente amiga


uma estranha inimiga


que palavra é essa


que afasta


transforma uma praça diálogo da paz


em tormenta de batalha


monólogos de guerra


e deixa no corpo


as letras-estilhaços


explodidas de uma boca-granada



que palavra é essa


que uso no cotidiano


e que não sei


que avaria ela causa


porque ela não me deixa ver nada


além do meu próprio nariz



que palavra é essa


que uso sem saber


que é um dardo envenenado


uma bala azeda


que sai enviesada


penetra fundo pelo ouvido


sem passar pelo coração


vira a cabeça de quem ali


amigo irmão conhecido desconhecido


expõe entranhas falácias e medos


porque não queremos mostrar


aquilo que somos,


arremedos


do que gostaríamos de ser



que palavra é essa


que o tempo todo


uso como ameaça


para lutar contra a sorte azar


virtude fortuna


maquiavelicamente construída


e fazer de mim um falso forte



essa fala, contudo


mal criada


não muda nada


porque continuo assim


sempre frente a frente


sem escapar de mim



que palavra é essa


que quando me dou conta


bumeranguemente


me expõe ao vazio


entranhamente vazio


eu


um corpo em terreno baldio



 

2.


quero tirar a palavra guerra da minha fala


já que não posso ainda tirá-la da vida afora


quero tirar a palavra luta da minha fala


porque não posso ainda tirá-la da vida que em outros assola


quero tirar a palavra arma da minha fala


já que não posso ainda tirá-la da mão assassina


quero tirar a palavra metralhadora da minha fala


já que não posso ainda tirá-la da linha de frente


quero tirar a palavra exército da minha fala


já que não posso ainda e ainda excluí-la dos impérios nações


quero tirar a palavra soldado da minha fala


já que não posso ainda transformá-lo em ave solta


quero tirar a palavra fuzil da minha fala


já que não posso ainda tirá-la do olho cego dos raivosos


quero tirar a palavra granada da minha fala


já que não posso ainda enterrá-la na areia movediça


quero tirar a palavra revólver da minha fala


já que não posso ainda removê-la das mentes covardes e dedos insanos


quero tirar a palavra trincheira da minha fala


já que não posso ainda transformá-la em canteiro de bons sabores e odores



quero usar na minha fala


somente tudo o que seja calma e verdade


e sobretudo


que não destrua


nem a minha nem a sua


alma irmandade



quero usar na minha fala


isto sim e sempre


ao invés de intrépidos e dolorosos torpedos


suaves, simples e claros argumentos



 

3.


quero tirar algumas palavras da minha vida


já que não posso excluí-las do dicionário


porque não posso tirá-las da cabeça dos incautos



quero tirar a palavra bala irada da minha fala


e transformá-la num sempre doce alimento



porque a bala que se aninha e se aloja


provoca um sangrento ferimento


tanto no corpo animado


como no pensamento



falo em metáfora bala


como qualquer armamento


porque são letras soltas


que em dado momento


desconstroem uma cabeça


e com uma simples sentença


destroem qualquer sapiência



 

4.


há que cuidar das letras


e temperá-las com aromas


que as transformem em perfumes


ou saborosos sabores


daqueles comidos em família


sangue ou não do meu sangue


sem ser exangue



quero brincar com as letras


e com elas criar palavras


sensíveis, verdadeiras, possíveis


como paz, amor, carinho, solidariedade,


e usá-las à vontade


sem medo nem vergonha


e tentar que elas pouco a pouco


afastem calma e suavemente


o ódio, a raiva, a inveja, a maldade



vamos juntar letras areias e barros


e criar palavras tijolos e paredes


e construir novas moradas


para cabermos todos inteiros


nos nossos todos momentos


quando somos grandes ou pequenos


mas somos


e conscientemente


existimos



vamos juntas letras sementes


e criar hortas, canteiros, pomares, florestas


e criar alimentos


daqueles que se almoça e janta


para sonhar intensamente a noite


e comemorar um novo dia



vamos juntas letras notas musicais


e cantar em coro a alegria de sorrir



vamos juntar letras


e construir palavras


e então


poder olhar


depois da tempestade


um arco-íris


num horizonte porvir



o alfabeto é nosso


as letras estão aí


e as palavras…



só nos faltam ciência, coragem e consciência


para reconstruir talvez as mesmas palavras


para um novo nosso dicionário


que humanize pacificamente


por noites e manhãs


toda a nossa fala hoje amanhã dia após dia

 

 

 



Fernando Rios

 



10/11/2022



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