segunda-feira, 2 de maio de 2022

"Desaparecidos" - Affonso Romano de Sant’Anna

 



Desaparecidos

 

 

 

 

 



De repente, naqueles dias, começaram


a desaparecer pessoas, estranhamente.


Desaparecia-se. Desaparecia-se muito


naqueles dias.




Ia-se colher a flor oferta


e se esvanecia.


Eclipsava-se entre um endereço e outro


ou no táxi que se ia.


Culpado ou não, sumia-se


ao regressar do escritório ou da orgia.


Entre um trago de conhaque


e um aceno de mão, o bebedor sumia.


Evaporava o pai


ao encontro da filha que não via.


Mães segurando filhos e compras,


gestantes com tricots ou grupos de estudantes


desapareciam.


Desapareciam amantes em pleno beijo


e médicos em meio à cirurgia.


Mecânicos se diluíam


— mal ligavam o torno do dia.


Desaparecia-se. Desaparecia-se muito


naqueles dias.




Desaparecia-se a olhos vistos


e não era miopia. Desaparecia-se


até à primeira vista. Bastava


que alguém visse um desaparecido


e o desaparecido desaparecia.


Desaparecia o mais conspícuo


e o mais obscuro sumia.


Até deputados e presidentes evanesciam.


Sacerdotes, igualmente, levitando


iam, aerefeitos, constatar no além


como os pecadores partiam.




Desaparecia-se. Desaparecia-se muito


naqueles dias.


Os atores no palco


entre um gesto e outro, e os da plateia


enquanto riam.


Não, não era fácil


ser poeta naqueles dias.


Porque os poetas, sobretudo


— desapareciam.



 

 

 

 

 

Affonso Romano de Sant’Anna


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