"Poema para a catástrofe do nosso tempo" - Alberto Pucheu
Poema para a catástrofe do nosso tempo
I
Amanhã não será um dia melhor
do que hoje, que não é um dia
melhor do que ontem. Há um
sentimento fúnebre no ar,
de quem tem vivenciado
uma morte após a outra,
de quem tem vivenciado,
antecipadamente, mais uma
morte, a última delas, a morte
após a própria morte, a morte
da qual não se tem retorno,
a morte da qual os mortos
não voltam dela para a vida,
a morte a que apenas os vivos
se encaminham para ela
sem jamais poder voltar,
a morte da qual não se tem
poemas para se fazer,
não a morte simbólica,
mas a outra, a real,
a experiência final da morte
em vida, da qual sobrevivemos,
se tanto, ainda que neste mundo,
enquanto fantasmas desossados,
descarnados, desfigurados,
que berram na tentativa de evitar
a morte e de evitar, a todo custo,
a morte em vida. Berramos em vão.
Não assustamos mais ninguém
com nossos berros. São eles, antes,
os inassustáveis, que nos assustam.
A cada momento, tentamos aprender
a fazer, fantasmaticamente,
o improvável luto de nossas
mortes, o que, quando conseguimos,
é tão somente de um modo
individual, jamais coletivamente.
Nunca aprendemos a fazer
o luto coletivo do que matou
e torturou muitos de nós, nunca
aprendemos a fazer a luta coletiva
contra nossa história de horror,
que permanece torturando e matando.
Os torturadores e assassinos
estão vivos, viveram em família
sem ser incomodados, falam
em nome da família e de deus,
viraram nomes de ruas, pontes,
cidades até se alçarem, de novo,
ao posto da presidência e da vice-
presidência da república
e, dessa vez, com o amplo apoio
do fascismo que há nas pessoas,
forjado por propagandas enganosas
da grande mídia, por fake news
compradas pelas grandes empresas
de outras grandes empresas
que governam o mundo,
os países e as pessoas.
Se, a cada vez que alguém grita
“não passarão”, eles já passaram
e continuam passando com força,
cada vez, desmesuradamente
maior, como alguns de nós ainda
perguntamos “como resistir?”,
“como resistir hoje?”.
Neste momento, é importante dizer
que a poesia não é uma arma
contra o autoritarismo, mas
o desejo de desarmar
o autoritarismo, desarmando
os que querem acabar
com a democracia em nome
do autoritarismo ou da ditadura.
Desarmar, portanto, ao menos,
e para quase ninguém,
mas desarmar, desde nossa
impotência radical,
um dos modos do autoritarismo,
um dos modos do fascismo,
o da língua. Amanhã
não será um dia melhor
do que hoje, que não é um dia
melhor do que ontem. Alguns anos
atrás, foi possível um recomeço
para um país que vivera 21 anos
sob governo militar, sob tortura,
sob assassinatos, sob corrupção,
sob inflação desmesurada, com dívida
externa impagável, a que agora
se quer, declarada e cinicamente,
voltar. Depois de, antes mesmo
de ser eleito, já ter dito e repetido
“eu sou favorável à tortura,
tu sabes disso, e o povo também
é favorável à tortura”, “através
do voto você não vai mudar nada
nesse país, nada, absolutamente
nada, só vai mudar, infelizmente,
no dia que nós partirmos
para uma guerra civil aqui dentro,
e fazendo o trabalho
que o regime militar não fez,
matando uns 30 mil… Se vai morrer
alguns inocentes, tudo bem”,
“minha especialidade é matar,
não é curar ninguém”, “o erro
da ditadura foi torturar
e não matar”, “Pinochet
devia ter matado mais gente”,
“vamos fuzilar a petralhada”,
o presidente, em campanha,
afirmou que o objetivo
de seu governo é fazer
com que o Brasil volte
40 ou 50 anos, ou seja, volte para
os piores anos, para os porões,
para os calabouços mais sombrios
da ditadura militar.
A partir de então, é preciso dizer
que o futuro é o passado, que
o que está à frente é o que está
40 ou 50 anos atrás, a partir
de então, tudo é o fim,
tudo é pior do que o fim,
tudo é o fim e o dia seguinte
do fim, a sobrevivência
fantasmática, desossada,
descarnada, desfigurada,
diária, frente ao pior,
ao mais do que pior.
Em campanha, repetindo
publicamente
o que nenhuma instituição
lhe limitou dizer nem fazer,
ele já havia dito tudo:
“Vamos fazer uma limpeza
nunca vista na história
desse Brasil”, “vamos varrer
do mapa esses bandidos
vermelhos do Brasil”,
“essa turma, se quiser ficar
aqui, vai ter que se colocar
sob a lei de todos nós.
Ou vão para fora ou vão
para a cadeia. Vai tudo vocês
para a Ponta da praia”.
“Ponta da praia”, vocês
sabem, é a base da marinha
na restinga de Marambaia
no Rio de Janeiro, onde
os opositores da ditadura
eram executados
e desovados. Tudo isso
começou há muito tempo,
tudo isso começou
com genocídios e escravidões,
tudo isso atravessou muitos
de nossos momentos, tudo
isso poderia ter vários
começos e recomeços,
mas, mais recentemente,
tudo isso recomeçou,
por exemplo, naquele
17 de abril de 2016,
o dia em que o pior do Brasil
se expôs pública
e espetacularizadamente
sem qualquer escrúpulo,
na programação de um dia
de domingo, em nome das famílias
dos deputados, em nome
de deus, em nome de qualquer
coisa, menos em nome
da coisa pública.
Nesse dia, ele, o pior, como outros
dentre os piores, deu seu voto
a favor do impeachment dizendo
o que de maneira alguma
poderia ser permitido
ser dito: “pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de tudo, o meu voto é sim”.
No elogio ao torturador
da presidenta da república
(e de tantos outros e outras),
em plena câmara dos deputados,
televisionado em espetáculo
para todo o país,
no elogio do torturador
conhecido por, além de tudo o mais,
colocar ratos
nas vaginas das mulheres,
conhecido por fazer crianças
assistirem seus pais
sendo torturados,
conhecido por torturar as crianças
na frente de seus pais,
quando ele deveria ter saído
dali preso, mas não saiu,
o ilimitado do autoritarismo
brasileiro não encontrou
mais nenhuma limitação.
Naquele dia, com essa
e outras falas, seguidamente,
terríveis, mesmo para nós,
que sempre soubemos
dos nossos piores dias,
aquele foi o dia do pior
do que o pior. De lá para cá,
temos berrado em vão,
em vão, berramos quando
depuseram injustamente
a presidenta, em vão, berramos
quando prenderam injustamente
o ex-presidente operário,
impossibilitando sua candidatura,
em vão, berramos contra o Supremo,
contra o TSE, em vão berramos
contra o assassinato de Marielle
e em vão continuamos a berrar,
ainda que tudo esteja às claras,
quem mandou matar Marielle?
Não assustamos mais ninguém
com nossos berros; são eles,
antes, os inassustáveis,
que diariamente nos assustam.
De lá para cá, como o esperado,
tudo só vem piorando
cada vez mais, com o pleno
consentimento dos poderes
institucionais, do Supremo,
e teimam, ainda, em dizer,
que o Brasil está funcionando
normalmente. Não, ele não
está funcionando
normalmente, não, ele não.
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