domingo, 7 de fevereiro de 2021

"Poema para a catástrofe do nosso tempo" - Alberto Pucheu

 

Cemitério N.S. Aparecida, Manaus, 13 de maio de 2020





Poema para a catástrofe do nosso tempo



I


Amanhã não será um dia melhor


do que hoje, que não é um dia


melhor do que ontem. Há um


sentimento fúnebre no ar,


de quem tem vivenciado


uma morte após a outra,


de quem tem vivenciado,


antecipadamente, mais uma


morte, a última delas, a morte


após a própria morte, a morte


da qual não se tem retorno,


a morte da qual os mortos


não voltam dela para a vida,


a morte a que apenas os vivos


se encaminham para ela


sem jamais poder voltar,


a morte da qual não se tem


poemas para se fazer,


não a morte simbólica,


mas a outra, a real,


a experiência final da morte


em vida, da qual sobrevivemos,


se tanto, ainda que neste mundo,


enquanto fantasmas desossados,


descarnados, desfigurados,


que berram na tentativa de evitar


a morte e de evitar, a todo custo,


a morte em vida. Berramos em vão.


Não assustamos mais ninguém


com nossos berros. São eles, antes,


os inassustáveis, que nos assustam.


A cada momento, tentamos aprender


a fazer, fantasmaticamente,


o improvável luto de nossas


mortes, o que, quando conseguimos,


é tão somente de um modo


individual, jamais coletivamente.


Nunca aprendemos a fazer


o luto coletivo do que matou


e torturou muitos de nós, nunca


aprendemos a fazer a luta coletiva


contra nossa história de horror,


que permanece torturando e matando.


Os torturadores e assassinos


estão vivos, viveram em família


sem ser incomodados, falam


em nome da família e de deus,


viraram nomes de ruas, pontes,


cidades até se alçarem, de novo,


ao posto da presidência e da vice-


presidência da república


e, dessa vez, com o amplo apoio


do fascismo que há nas pessoas,


forjado por propagandas enganosas


da grande mídia, por fake news


compradas pelas grandes empresas


de outras grandes empresas


que governam o mundo,


os países e as pessoas.


Se, a cada vez que alguém grita


“não passarão”, eles já passaram


e continuam passando com força,


cada vez, desmesuradamente


maior, como alguns de nós ainda


perguntamos “como resistir?”,


“como resistir hoje?”.


Neste momento, é importante dizer


que a poesia não é uma arma


contra o autoritarismo, mas


o desejo de desarmar


o autoritarismo, desarmando


os que querem acabar


com a democracia em nome


do autoritarismo ou da ditadura.


Desarmar, portanto, ao menos,


e para quase ninguém,


mas desarmar, desde nossa


impotência radical,


um dos modos do autoritarismo,


um dos modos do fascismo,


o da língua. Amanhã


não será um dia melhor


do que hoje, que não é um dia


melhor do que ontem. Alguns anos


atrás, foi possível um recomeço


para um país que vivera 21 anos


sob governo militar, sob tortura,


sob assassinatos, sob corrupção,


sob inflação desmesurada, com dívida


externa impagável, a que agora


se quer, declarada e cinicamente,


voltar. Depois de, antes mesmo


de ser eleito, já ter dito e repetido


“eu sou favorável à tortura,


tu sabes disso, e o povo também


é favorável à tortura”, “através


do voto você não vai mudar nada


nesse país, nada, absolutamente


nada, só vai mudar, infelizmente,


no dia que nós partirmos


para uma guerra civil aqui dentro,


e fazendo o trabalho


que o regime militar não fez,


matando uns 30 mil… Se vai morrer


alguns inocentes, tudo bem”,


“minha especialidade é matar,


não é curar ninguém”, “o erro


da ditadura foi torturar


e não matar”, “Pinochet


devia ter matado mais gente”,


“vamos fuzilar a petralhada”,


o presidente, em campanha,


afirmou que o objetivo


de seu governo é fazer


com que o Brasil volte


40 ou 50 anos, ou seja, volte para


os piores anos, para os porões,


para os calabouços mais sombrios


da ditadura militar.


A partir de então, é preciso dizer


que o futuro é o passado, que


o que está à frente é o que está


40 ou 50 anos atrás, a partir


de então, tudo é o fim,


tudo é pior do que o fim,


tudo é o fim e o dia seguinte


do fim, a sobrevivência


fantasmática, desossada,


descarnada, desfigurada,


diária, frente ao pior,


ao mais do que pior.


Em campanha, repetindo


publicamente


o que nenhuma instituição


lhe limitou dizer nem fazer,


ele já havia dito tudo:


“Vamos fazer uma limpeza


nunca vista na história


desse Brasil”, “vamos varrer


do mapa esses bandidos


vermelhos do Brasil”,


“essa turma, se quiser ficar


aqui, vai ter que se colocar


sob a lei de todos nós.


Ou vão para fora ou vão


para a cadeia. Vai tudo vocês


para a Ponta da praia”.


“Ponta da praia”, vocês


sabem, é a base da marinha


na restinga de Marambaia


no Rio de Janeiro, onde


os opositores da ditadura


eram executados


e desovados. Tudo isso


começou há muito tempo,


tudo isso começou


com genocídios e escravidões,


tudo isso atravessou muitos


de nossos momentos, tudo


isso poderia ter vários


começos e recomeços,


mas, mais recentemente,


tudo isso recomeçou,


por exemplo, naquele


17 de abril de 2016,


o dia em que o pior do Brasil


se expôs pública


e espetacularizadamente


sem qualquer escrúpulo,


na programação de um dia


de domingo, em nome das famílias


dos deputados, em nome


de deus, em nome de qualquer


coisa, menos em nome


da coisa pública.


Nesse dia, ele, o pior, como outros


dentre os piores, deu seu voto


a favor do impeachment dizendo


o que de maneira alguma


poderia ser permitido


ser dito: “pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de tudo, o meu voto é sim”.


No elogio ao torturador


da presidenta da república


(e de tantos outros e outras),


em plena câmara dos deputados,


televisionado em espetáculo


para todo o país,


no elogio do torturador


conhecido por, além de tudo o mais,


colocar ratos


nas vaginas das mulheres,


conhecido por fazer crianças


assistirem seus pais


sendo torturados,


conhecido por torturar as crianças


na frente de seus pais,


quando ele deveria ter saído


dali preso, mas não saiu,


o ilimitado do autoritarismo


brasileiro não encontrou


mais nenhuma limitação.


Naquele dia, com essa


e outras falas, seguidamente,


terríveis, mesmo para nós,


que sempre soubemos


dos nossos piores dias,


aquele foi o dia do pior


do que o pior. De lá para cá,


temos berrado em vão,


em vão, berramos quando


depuseram injustamente


a presidenta, em vão, berramos


quando prenderam injustamente


o ex-presidente operário,


impossibilitando sua candidatura,


em vão, berramos contra o Supremo,


contra o TSE, em vão berramos


contra o assassinato de Marielle


e em vão continuamos a berrar,


ainda que tudo esteja às claras,


quem mandou matar Marielle?


Não assustamos mais ninguém


com nossos berros; são eles,


antes, os inassustáveis,


que diariamente nos assustam.


De lá para cá, como o esperado,


tudo só vem piorando


cada vez mais, com o pleno


consentimento dos poderes


institucionais, do Supremo,


e teimam, ainda, em dizer,


que o Brasil está funcionando


normalmente. Não, ele não


está funcionando


normalmente, não, ele não.


PARA LER AS RESTANTES PARTES DO POEMA DE ALBERTO PUCHEU CLIQUE AQUI


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