quinta-feira, 7 de maio de 2020

"Poema do desgaste e do contraste" - Adão Cruz

Homem solitário - Aristóteles - Sentimentos


Poema do desgaste e do contraste

Há muito que não saía à rua
há muito que não saía fora de mim
em direção ao meu corpo abandonado
estendido em fria paleta sem cor
sobre um manto de poemas carcomidos
ruídos de musgo e manchas de bolor.

Há muito que não saía à rua
há muito que não sentia a dor
do desprezo da poesia
feita espuma de coisas impalpáveis
escaldantes
abertas e sangrantes
no sofrido labirinto da alma vazia.

Há muito que não saía à rua
há muito que não me apercebia um só momento
do cantar bronco do poeta
em perpétuo e estúpido invento.
Há muito que não saía à rua
há muito que não dobrava a porta deste corpo
abandonado na escuridão de uma noite peregrina
de lacrimosas horas perdidas
em poemas de cinza em cada esquina.

Há muito que não saía à rua
e pisava o chão purulento do degredo
na lama fria dos poemas e do medo
que rompiam as cadeias do meu corpo.

Há muito que não saía à rua
há muito que se apagou a felicidade
mudando o cair da noite e o nascer do dia
em matéria grosseiramente física
de versos telúricos
sem poesia nem liberdade.

Adão Cruz

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