Calle 13 - "Latinoamerica"
O grupo porto-riquenho Calle 13, cujo nome,
formação e país de origem são por si só extremamente simbólicos da relação
latino-americana especialmente com a América do Norte, desenvolve na letra de
“Latinoamerica” um percurso crítico que perpassa desde a história de exploração
da parte latina da América pelos europeus até os elementos mais sutis, poéticos
e de resistência que sustentam a existência dessa parte do continente. As
imagens presentes na letra compõem um quadro por meio do qual é possível chegar
a uma síntese da complexidade e das contradições que engendraram e construíram
os povos e os espaços latino-americanos. Antes de analisarmos as imagens
propriamente ditas, é importante ressaltar rapidamente a estrutura em torno da
qual a letra se constrói: vê-se uma nítida divisão da música em dois pólos
semânticos, de modo que de um lado organiza-se um 'eu', que se define,
afirma-se, critica e provoca; e, de outro lado, configura-se um 'tu-você', que
se constitui como um vocativo com quem aquele 'eu' mantém uma interlocução
questionadora e desmistificadora do que o 'tu' pensa desse 'eu'. Enquanto as
estrofes apresentam a auto-definição do latino-americano, o refrão é o espaço
em que há a crítica ao 'tu' e à postura materialista e monetarista dele. A
música começa afirmando pela própria boca da América Latina (que, portanto, é
personificada) que ela é o que ficou de um todo ou de uma quantidade. Que ela
seria o resto, a que foi deixada e abandonada. Em seguida, define-a como uma
irônica contradição; a América Latina estaria escondida num topo: tão à mostra,
estando, no entanto, tão oculta. É definida como alguém cujo trabalho gera o
que o outro consome, alguém cujo produto do trabalho, por exemplo, o fumo, é
sempre responsável pelo prazer alheio, nunca o próprio. Na sequência, a América
Latina é definida como a errante, a errada, a que vem em momento impróprio, ou
a que vem para aplacar algo caótico, como a delicadeza surgindo em meio à
violência. Afora isso, também seria o cotidiano – a rotina – a perenidade. A
música argumenta que o desenvolvimento dela, da América Latina, passa sempre
pela sua própria carne, sugerindo que qualquer desenvolvimento do continente
deveria ser endógeno, posto os interesses exógenos quererem sempre aproveitar
da situação não para desenvolver a América Latina de fato, mas para explorá-la
ainda mais e, o que é pior, em nome de um pseudo desenvolvimento. Ao mesmo
tempo, o continente latino-americano teria, em meio a essa perspectiva
promíscua da qual os outros a veem, poesia, sutileza e arte. Seria como uma
espécie de discurso seco, sem empolação, sem incremento, sem floreios, sem
pomposidade, mas bonito, belo e simpático. A América Latina seria ainda a
saudade, os vestígios daquilo que um dia já foi, mas paradoxalmente também o
alimento do outro (no caso, o explorador). A América Latina seria humilde,
simples, mas ousada, corajosa, tendo sua síntese em sua terra e em seu
trabalho. Já próximo ao refrão, acentuam-se o empenho e a luta isolada e
solitária da América Latina: ela levanta suas próprias bandeiras, suas causas,
pois a depender dos outros, nenhuma bandeira seria levantada. Cria-se um
paralelo entre um aspecto geográfico e um aspecto cultural: o povo
latino-americano seria resistente, pois teria aprendido com a espinha dorsal
presente em seu território: a cordilheira dos Andes. As tradições, os
ensinamentos e a família são outros traços dos povos originários que, segundo a
música, teriam ficado como herança para a América Latina, que não ignoraria tal
legado, pois se o fizesse se comportaria como alguém que ignorasse a própria
mãe. Uma das imagens mais síntese ocorre quando a letra afirma que a América
Latina é um povo sem pernas, posto terem-nas tirado, mas que caminha e que faz,
portanto, o impossível. No refrão, enfim, alega-se que o 'você' mantém uma
relação apenas comercial com o 'eu', mas que há coisas que este 'você' não pode
incluir neste comportamento: são os elementos da natureza e os sentimentos,
posto não serem compráveis. A letra termina, em sua segunda parte, trazendo
elementos culturais, religiosos e poéticos da América Latina e acentuando a
luta e a insistência latino-americana em refazer o que os outros sempre
desfizeram. Seríamos, então, brutos, por um lado, posto serem brutos conosco,
mas, por outro, seríamos, sobretudo, sutis e caridosos. E não guardaríamos
vingança, embora não teríamos tido como esquecer, no exemplo citado na música,
a operação Condor. A letra termina reafirmando que a América Latina caminha,
luta, apesar e acima de tudo. E reitera a oposição entre elementos tangíveis
(compráveis), em oposição aos intangíveis (não consumíveis, não
'monetarizáveis'). Podemos dizer que todos esses motivos somados acabariam por
criar as condições favoráveis para que a América Latina 1) teça a união
defendida por Bolívar e Martí e 2) defenda sua sobrevivência por meio do
pensamento proposto por Mariátegui, ou seja, focalizando seu desenvolvimento na
criação das próprias ideias e não apenas insistindo em reproduzir as dos
outros.
Alexandre
Martins
Para
ver a interpretação desta obra-prima em forma de canção, com participações de Totó la Momposina, Susana Baca e Maria Rita, clique no vídeo aqui
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