sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Calle 13 - "Latinoamerica"


O grupo porto-riquenho Calle 13, cujo nome, formação e país de origem são por si só extremamente simbólicos da relação latino-americana especialmente com a América do Norte, desenvolve na letra de “Latinoamerica” um percurso crítico que perpassa desde a história de exploração da parte latina da América pelos europeus até os elementos mais sutis, poéticos e de resistência que sustentam a existência dessa parte do continente. As imagens presentes na letra compõem um quadro por meio do qual é possível chegar a uma síntese da complexidade e das contradições que engendraram e construíram os povos e os espaços latino-americanos. Antes de analisarmos as imagens propriamente ditas, é importante ressaltar rapidamente a estrutura em torno da qual a letra se constrói: vê-se uma nítida divisão da música em dois pólos semânticos, de modo que de um lado organiza-se um 'eu', que se define, afirma-se, critica e provoca; e, de outro lado, configura-se um 'tu-você', que se constitui como um vocativo com quem aquele 'eu' mantém uma interlocução questionadora e desmistificadora do que o 'tu' pensa desse 'eu'. Enquanto as estrofes apresentam a auto-definição do latino-americano, o refrão é o espaço em que há a crítica ao 'tu' e à postura materialista e monetarista dele. A música começa afirmando pela própria boca da América Latina (que, portanto, é personificada) que ela é o que ficou de um todo ou de uma quantidade. Que ela seria o resto, a que foi deixada e abandonada. Em seguida, define-a como uma irônica contradição; a América Latina estaria escondida num topo: tão à mostra, estando, no entanto, tão oculta. É definida como alguém cujo trabalho gera o que o outro consome, alguém cujo produto do trabalho, por exemplo, o fumo, é sempre responsável pelo prazer alheio, nunca o próprio. Na sequência, a América Latina é definida como a errante, a errada, a que vem em momento impróprio, ou a que vem para aplacar algo caótico, como a delicadeza surgindo em meio à violência. Afora isso, também seria o cotidiano – a rotina – a perenidade. A música argumenta que o desenvolvimento dela, da América Latina, passa sempre pela sua própria carne, sugerindo que qualquer desenvolvimento do continente deveria ser endógeno, posto os interesses exógenos quererem sempre aproveitar da situação não para desenvolver a América Latina de fato, mas para explorá-la ainda mais e, o que é pior, em nome de um pseudo desenvolvimento. Ao mesmo tempo, o continente latino-americano teria, em meio a essa perspectiva promíscua da qual os outros a veem, poesia, sutileza e arte. Seria como uma espécie de discurso seco, sem empolação, sem incremento, sem floreios, sem pomposidade, mas bonito, belo e simpático. A América Latina seria ainda a saudade, os vestígios daquilo que um dia já foi, mas paradoxalmente também o alimento do outro (no caso, o explorador). A América Latina seria humilde, simples, mas ousada, corajosa, tendo sua síntese em sua terra e em seu trabalho. Já próximo ao refrão, acentuam-se o empenho e a luta isolada e solitária da América Latina: ela levanta suas próprias bandeiras, suas causas, pois a depender dos outros, nenhuma bandeira seria levantada. Cria-se um paralelo entre um aspecto geográfico e um aspecto cultural: o povo latino-americano seria resistente, pois teria aprendido com a espinha dorsal presente em seu território: a cordilheira dos Andes. As tradições, os ensinamentos e a família são outros traços dos povos originários que, segundo a música, teriam ficado como herança para a América Latina, que não ignoraria tal legado, pois se o fizesse se comportaria como alguém que ignorasse a própria mãe. Uma das imagens mais síntese ocorre quando a letra afirma que a América Latina é um povo sem pernas, posto terem-nas tirado, mas que caminha e que faz, portanto, o impossível. No refrão, enfim, alega-se que o 'você' mantém uma relação apenas comercial com o 'eu', mas que há coisas que este 'você' não pode incluir neste comportamento: são os elementos da natureza e os sentimentos, posto não serem compráveis. A letra termina, em sua segunda parte, trazendo elementos culturais, religiosos e poéticos da América Latina e acentuando a luta e a insistência latino-americana em refazer o que os outros sempre desfizeram. Seríamos, então, brutos, por um lado, posto serem brutos conosco, mas, por outro, seríamos, sobretudo, sutis e caridosos. E não guardaríamos vingança, embora não teríamos tido como esquecer, no exemplo citado na música, a operação Condor. A letra termina reafirmando que a América Latina caminha, luta, apesar e acima de tudo. E reitera a oposição entre elementos tangíveis (compráveis), em oposição aos intangíveis (não consumíveis, não 'monetarizáveis'). Podemos dizer que todos esses motivos somados acabariam por criar as condições favoráveis para que a América Latina 1) teça a união defendida por Bolívar e Martí e 2) defenda sua sobrevivência por meio do pensamento proposto por Mariátegui, ou seja, focalizando seu desenvolvimento na criação das próprias ideias e não apenas insistindo em reproduzir as dos outros.


Alexandre Martins


Para ver a interpretação desta obra-prima em forma de canção, com participações de Totó la Momposina, Susana Baca e Maria Rita, clique no vídeo aqui

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