sexta-feira, 15 de novembro de 2024

"Do tempo ao coração" - David Mourão-Ferreira

 



Do tempo ao coração



E volto a murmurar    Do cântico de amor


gerado na Suméria      às novas europutas


Do muito que me dás ao muito que não dou


mas que sempre conservo entre as coisas mais puras




De uma genebra a mais num bar de Amsterdão


a não perder o pé numa praia da Grécia


De tantas       tantas mãos          que nos passam pelas mãos


a tão poucas que são as que nunca se esquecem




De ter visto o começo e o fim da Via Ápia


De ter atravessado o muro de Berlim


De outros muros que não aparecem no mapa


De outros muros que só aparecem aqui




ao barro deste céu que te modela os ombros


ao sopro deste céu que te solta o cabelo


ao riso deste céu que vem ao nosso encontro


quando sabe que nós não precisamos dele



Da pertinaz presença          E da longevidade


do corvo         do chacal            do louco          do eunuco


ao rouxinol que morre em plena madrugada


à rosa que adormece em caules de um minuto



Do que foi noutro tempo a saúde no campo


à lepra que nos rói a paisagem bucólica


Do tempo          ao coração minado pelo cancro


Dos rins             ao infinito incubado na cólera



Do tempo ao coração            mas com pausa na pele


como «Roma by night» entre dois aviões


como passar o Verão numa vogal aberta


como dizer que não         que já não somos dois




Dos rins ao infinito       A este       que não outro

Ao que rola dos rins    Ao que vai rebentar-te


na câmara blindada e noturna do útero


E nos transfere o fim para um pouco mais tarde




Da curva de entretanto       à entrada do poço


De soletrar em mim       a ler       nas tuas mãos


como é rápido       e lento      e reto       e sinuoso

o percurso que vai do tempo ao coração.




David Mourão-Ferreira



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