quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

"Cinco lições de amor" - Mar Becker


 


Cinco lições de amor

 




a primeira lição de amor foi quando vi a boca da minha irmã inchada de sono, entreaberta


o ar através, e a ideia de uma ferida que não cicatriza



a segunda lição de amor veio numa tarde de brincadeira


cada uma segurava um dente-de-leão diante


dos lábios


meia dúzia de palavras a dizer, e no final contar quantos fiapos sobravam


(ou se há mesmo flores que nem o dizível suportam)



a terceira lição de amor nasceu da boca da mãe


melhor não deixar serviço pro dia seguinte, ela dizia; melhor não ir pro quarto

dormir com a cozinha suja


não deixar louça por lavar, resto de nescau nos copos, farelo espalhado pela mesa. tu e tua irmã, também as frutas vocês escondam sempre, cubram com um pano de prato, ponham na geladeira. tem que cuidar, que de madrugada os espíritos vagam com fome, e aí até uma sobra de doce de abóbora no fio da faca pode chamá-los a entrar e


comer


essa história a gente ouvia ser contada de muitos jeitos, e eu toda vez reagia com algum espanto. não porque acreditava, isso não, a mãe falava por bobagem, queria a cozinha em ordem, ponto, mas


só o fato de imaginar, conceber que mesmo corpos leves como o ar, fantasmáticos


mesmo eles poderiam ter algo de rente à ternura rastejeira das ratas,

compartilhando o mesmo método na busca


de um fio de vida



a quarta lição de amor, quando descobri onde devia me posicionar durante a missa, na catedral


se eu me sentasse à direita, bem no meio do segundo banco contando como quem segue em direção à saída, do altar para a porta


se erguesse os olhos na hora da eucaristia, aí teria como ver as mãos com nitidez


as mãos e os dedos tortos daquela que


era sempre a primeira da fila


a receber a hóstia



a quinta lição de amor


quando saí de um banho certa vez, nessa época no começo da anorexia, aos 15 anos


o cabelo preso, não tinha lavado; uma e outra mecha caindo no pescoço, e entre elas ramos azuis, esses tingidos na noite anterior, com papel crepom. eu diante espelho


e os fios em metileno escorrendo por finíssimos veios d’água. no colo, um pouco acima dos seios, a trama de tentáculos


(mulher inteira coberta pelo sonho daquela medusa a que chamam “imortal”)



 

Mar Becker



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