"Cinco lições de amor" - Mar Becker
Cinco lições de amor
a primeira lição de amor foi quando vi a boca da minha irmã inchada de
sono, entreaberta
o ar através, e a ideia de uma ferida que não cicatriza
a segunda lição de amor veio numa tarde de brincadeira
cada uma segurava um dente-de-leão diante
dos lábios
meia dúzia de palavras a dizer, e no final contar quantos fiapos
sobravam
(ou se há mesmo flores que nem o dizível suportam)
a terceira lição de amor nasceu da boca da mãe
melhor não deixar serviço pro dia seguinte, ela dizia; melhor não ir pro quarto
dormir com a cozinha suja
não deixar louça por lavar, resto de nescau nos copos, farelo espalhado
pela mesa. tu e tua irmã, também as frutas vocês escondam sempre, cubram com um
pano de prato, ponham na geladeira. tem que cuidar, que de madrugada os
espíritos vagam com fome, e aí até uma sobra de doce de abóbora no fio da faca
pode chamá-los a entrar e
comer
essa história a gente ouvia ser contada de muitos jeitos, e eu toda vez
reagia com algum espanto. não porque acreditava, isso não, a mãe falava por
bobagem, queria a cozinha em ordem, ponto, mas
só o fato de imaginar, conceber que mesmo corpos leves como o ar,
fantasmáticos
mesmo eles poderiam ter algo de rente à ternura rastejeira das ratas,
compartilhando o mesmo método na busca
de um fio de vida
a quarta lição de amor, quando descobri onde devia me posicionar durante
a missa, na catedral
se eu me sentasse à direita, bem no meio do segundo banco contando como
quem segue em direção à saída, do altar para a porta
se erguesse os olhos na hora da eucaristia, aí teria como ver as mãos
com nitidez
as mãos e os dedos tortos daquela que
era sempre a primeira da fila
a receber a hóstia
a quinta lição de amor
quando saí de um banho certa vez, nessa época no começo da anorexia, aos
15 anos
o cabelo preso, não tinha lavado; uma e outra mecha caindo no pescoço, e
entre elas ramos azuis, esses tingidos na noite anterior, com papel crepom. eu
diante espelho
e os fios em metileno escorrendo por finíssimos veios d’água. no colo,
um pouco acima dos seios, a trama de tentáculos
(mulher inteira coberta pelo sonho daquela medusa a que chamam
“imortal”)
Mar Becker
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