Entrevista Josina Machel: “Senti que a justiça criminal de Moçambique me tinha posto uma faca no estômago”
Cinco anos depois de ter sido agredida violentamente pelo então
companheiro, a filha de Samora Machel e enteada de Nelson Mandela está abalada
com a Justiça do seu país, depois de o Tribunal Superior de Recurso ter anulado
a condenação do homem que a deixou parcialmente cega. “É uma grande traição
para as mulheres (…) que depositam a sua confiança no sistema judicial”,
desabafa.
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"A minha vida mudou e
nunca mais voltará a ser a mesma", diz Josina Machel, que perdeu a vista
direita devido à agressão DR
Tem nome de guerreira – em homenagem à primeira mulher do pai,
guerrilheira da Frelimo, morta em 1971 – e o seu reerguer depois do
episódio de violência doméstica de que foi vítima em Outubro de 2015, na
consequência do qual perdeu a vista direita, mostra que também é lutadora.
Denunciou o seu caso, foi até às últimas consequências e conseguiu que o seu
agressor, o ex-companheiro Rufino Licuco, fosse condenado, em Fevereiro de
2017, a três anos e quatro meses de prisão e a pagar-lhe uma indemnização
superior a 200 milhões de meticais (2,5 milhões de euros).
Josina Machel, filha do primeiro Presidente de Moçambique,
Samora Machel, e enteada do primeiro Presidente negro da África do Sul, Nelson
Mandela, tem-se dedicado, desde então, à causa da luta contra a violência de
gênero. Criou uma organização não-governamental para ajudar mulheres que
passaram pelo mesmo, o Movimento Kuhluka,
contou a sua história, transformou-a num exemplo de que nenhuma mulher está
livre de ser alvo de violência, porque se aconteceu a alguém como ela, que
cresceu num ambiente seguro e privilegiado, com uma mãe defensora dos direitos
das mulheres e que estudou nas melhores escolas (tem um mestrado na London
School of Economics), pode acontecer a todas, ricas ou pobres, letradas ou
iletradas.
Quase cinco anos depois de um episódio que lhe deixou marcas
para sempre, o Tribunal Superior de Recurso decidiu, no mês passado, anular a
sentença de primeira instância por considerar que não havendo testemunhas além
do agressor e da agredida não se podia condenar o arguido. Licuco foi assim
absolvido.
O que sentiu ao saber da decisão do Tribunal Superior de
Recurso?
Obviamente senti que o
sistema de justiça criminal de Moçambique me tinha posto uma faca no estômago.
Eu decidi falar. De certa maneira até parece inconsciente da minha parte,
decidi contar a verdade imediatamente após a agressão. Fui a instituições
públicas, estive no hospital, durante a minha estadia falei com agentes da
polícia e com agentes de saúde, a quem expliquei o que me tinha acontecido.
Depois disso, optei por levar o assunto à Justiça. Tenho provas incontestáveis
que levaram à primeira sentença. É uma grande decepção. É uma grande traição
que o sistema judicial moçambicano tenha optado por ignorar factos que são
claros, factos que estão provados na primeira instância.
A maneira como olho para isto, como mulher moçambicana, como
mulher africana, como mulher do mundo, é que muitas de nós fazemos o grande
esforço de nos expormos, mostrar evidências irrefutáveis e, depois, as
instituições escolhem tomar decisões com deficiências flagrantes, em desafio à
legislação aprovada no país. Não faz sentido hoje, num Estado de direito, dizer
que um caso tem de ser anulado porque a violência aconteceu entre quatro
paredes e só estavam a acusadora e o acusado. Ora, essa é exatamente a característica
da violência doméstica, os abusadores não abusam na presença de testemunhas. É
uma grande traição para as mulheres que quebram o sigilo, que passam por cima
da vergonha e do estigma e depositam a sua confiança no sistema judicial e este
lhes responde dizendo que a prova não é suficiente porque não há testemunhas.
De que é que precisamos mais? Precisamos de estar mortas para o sistema ter em
conta as nossas experiências?
Ficou surpreendida com a decisão?
Absolutamente. Poderia entender se a sentença tivesse sido
modificada, se a compensação tivesse sido reduzida, mas absolver? Perante
provas tão claras? É um insulto à luta das mulheres contra a violência.
Poderá fazer regredir o que se tinha conseguido até em
Moçambique, no âmbito da luta contra a violência de gênero?
Não tenho dúvidas sobre isso, esta decisão vai fazer com que as
mulheres sintam que a Justiça não é fonte de refúgio e de proteção e vão
preferir ficar caladas. E que os abusadores sintam que a Justiça está do seu
lado e podem continuar a perpetrar a violência. E começará a ter impacto no
tipo de sentenças que vão começar a aparecer a partir de agora em Moçambique.
Esta decisão é reflexo de que ainda
existe em Moçambique uma cultura machista muito forte?
A cultura machista existe no mundo inteiro. Nós estamos num
sistema patriarcal e isto é exatamente consequência daquilo a que os inglesas
chamam backlash,
uma grande força que tenta mostrar, através destes métodos retrógrados ainda
fortes, que resistem a este processo de mudança e de reconhecimento dos
direitos iguais entre homens e mulheres.
O que vai fazer agora? Vai recorrer para o Tribunal Supremo?
Uma coisa é o que a Josina Machel como pessoa conta fazer, outra
coisa é a Josina Machel como ativista. As implicações desta sentença vão além
do indivíduo. Estamos num processo de consulta e de debate para ver se ainda
vale a pena levar o caso a instituições que, a nível pessoal, já têm o sangue
do meu pai nas mãos e que agora optaram, também, por ter o meu sangue nas suas
mãos. Será que vale a pena? Mas se vale é pelas outras mulheres e não por
Josina Machel.
Tem receio que o seu agressor, agora absolvido, possa voltar
para se vingar?
Espero que a decência não lhe dê coragem para fazer isso. Mas se
acontecer, o que é que posso fazer? Seria mais uma agressão, não faria uma
diferença muito grande. Depois de toda a intimidação que fez para eu parar o
caso, seria o mesmo tipo de intimidação dos últimos cinco anos. Espero que não
o faça, mas não me surpreenderia.
A sua vida mudou desde o caso…
… completamente. Sou meio cega, deixei de ver de uma vista
e não sou capaz de conduzir, tenho de ser levada. Não posso trabalhar no
computador como fazia, o meu ativismo é diferente. A minha vida social também
mudou, porque sou dependente das pessoas para me movimentar, principalmente ao
fim do dia. A minha vida mudou e nunca mais voltará a ser a mesma. Há pessoas
que optam por considerar este tipo de perda insignificante, mesmo quando há
mulheres que emocionalmente nunca mais serão as mesmas e a sua participação na
sociedade e na vida econômica acaba reduzida por causa do efeito psicológico da
violência doméstica. Eu sofro o efeito psicológico, mas também físico e isso
tem impactos muito grandes na qualidade de vida que agora tenho. Com esta
sentença tudo isso foi ignorado e negado pelo Estado moçambicano.
Desde 2015, tem feito questão de sublinhar que a violência de
gênero não conhece limites de classes, nem de privilégios, que mesmo a filha de
um Presidente e enteada de outro e filha de uma ativista pelos direitos das
mulheres (Graça Machel) pode ser vítima de violência doméstica. É importante
sublinhar que não há nenhuma mulher a salvo deste tipo de violência?
Completamente. A ironia do destino quis que uma pessoa como eu
passasse por este tipo de agressão, pelo mesmo tipo de humilhação que qualquer
mulher passa, perante os agentes de polícia, perante os agentes de saúde,
perante os agentes do sistema de justiça criminal; e pela condenação que
geralmente vem da nossa sociedade, uma sociedade que ainda não passou pela
transformação de mentalidade que ajude as sobreviventes de violência doméstica.
Esta batalha é de todos nós, não tem a ver com educação, com classe, com idade,
todas estamos sob um sistema de subjugação, um sistema de guerra contra as
mulheres. Todos os dias, da mesma maneira que um exército, também nós,
mulheres, somos agredidas, violadas, mutiladas, mortas e o mundo continua como
se nada estivesse a acontecer. Um Estado que vai para a guerra, prepara
infra-estruturas para lidar com os veteranos de guerra, mas os nossos Estados
optam por ignorar as vítimas desta realidade.
Todos os dias, da mesma
maneira que um exército, também nós, mulheres, somos agredidas, violadas,
mutiladas, mortas e o mundo continua como se nada estivesse a acontecer. Um Estado
que vai para a guerra, prepara infra-estruturas para lidar com os veteranos de
guerra, mas os nossos Estados optam por ignorar as vítimas desta realidade
A lei contra a violência doméstica em Moçambique fez dez anos em
2019, a sentença do Tribunal Superior de Recurso em relação ao seu caso mostra
que a existência dessa lei não reflete uma verdadeira mudança na sociedade
moçambicana?
A lei da violência doméstica foi vista como um grande sinal e o
nosso governo foi encarado como inovador por abraçar esta causa. Mas se, dez
anos mais tarde, o mesmo Estado de direito consegue agir desta maneira, é
porque aquilo foi apenas um papel aprovado para receber congratulações nesse
mundo fora. A minha sentença é o mesmo tipo de sentença que outras mulheres têm
recebido ao longo de todos estes anos, é mais um exemplo de que há uma grande
diferença entre a existência da lei e a sua aplicação.
Criou em 2015 o Movimento Kuhluka para ajudar mulheres vítimas
de violência de gênero. O que quer dizer kuhluka [lê-se kussuka]?
Kuhluka significa o renascer e foi escolhido porque é simbólico
do processo que acontece com todas as vítimas e sobreviventes de violência. Nós
costumamos usar a metáfora das árvores: depois de grandes incêndios, de grandes
cheias, a tendência é olhar para as árvores e dizer que dali já não vai nascer
nada, morreu. É como as mulheres vítimas de violência, é costume olhar para
elas e dizer que foram amputadas para o resto da vida; que morreram. E passados
meses, anos, olhamos para as mesmas árvores e começam a mostrar um verde novo.
É esse o simbolismo que usamos: depois de tudo o que nos aconteceu, voltamos a
crescer, renascemos.
Sente-se renascida?
Decididamente que renasci. Esta sentença deve ser uma tentativa
para cortar as novas flores e o verde que já nasceu, mas, felizmente, as raízes
são fundas, fertilizadas pelas várias irmãs em Moçambique e no mundo que passam
por isso e as suas histórias e o ver o quanto renascem, regenerou-me.
O que faz o movimento?
Primeiro, fazemos advocacia pelos direitos e serviços que têm de
ser disponibilizados pelo Estado, pelo sector privado, pela sociedade, para
promover a cura e a superação de mulheres que passaram por situações de
violência. Também defendemos juntos daqueles a que se chamam em inglês os custodians of culture [guardiões
da cultura] para que entendam que os direitos dos homens e das mulheres são
iguais e que os assuntos de violência de gênero não podem ser olhados como se
fossem de segunda categoria. Trabalhamos com as Nações Unidas e com várias
outras instituições internacionais para promover o direito de vítimas e
sobreviventes de violência. Em termos de atividades, distribuímos kits para
assistência a vítimas de violência nas primeiras horas depois do abuso, temos
também o que chamamos círculos de suporte que são grupos de mulheres onde elas
podem partilhar a sua experiência, podem aprender novas ferramentas para lidar
com essa viagem que é ser sobrevivente de violência. A tendência da sociedade é
pensar “isto já passou, já passaram uns meses, ela está bem, a vida andou para
a frente”: não! As mágoas, as sequelas continuam durante muito tempo e precisam
de ser lidadas de maneira sistemática e é isso que estamos a fazer. E advogamos
igualmente pela criação de espaços seguros nas nossas comunidades, aquilo a que
chamamos os abrigos, para que as mulheres tenham assistência médica, policial,
psicológica, etc. para que possam sair, semanas depois, com capacidade para
enfrentar a vida de maneira diferente. O trabalho da Kuhluka é advogar e
prestar serviços a sobreviventes de violência de gênero porque esse foi o vazio
que eu e várias outras mulheres identificamos ao começar esta viagem de
sobreviventes de violência.
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